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Psiuuu. Calar nem sempre significa ausência de palavras. As palavras são seres de gênio difícil. Escolhem seus interlocutores como se fizessem um jogo de sombras com bocas vazias e mentes inquietas. Prefiro as cores que são mais expansivas. As palavras fazem suas escolhas conforme a ocasião.  Claro que Solidão discorda. Ela prefere os que falam sem dizer aos que desenham metaforizando o mundo com olhos profundos.

Um senhor silencioso morava na casa ao lado. Nunca ouvi ruídos de móveis ou telefone. De palavras ou louças. Muito menos de animais ou músicas. Como ouvir o mundo alheio? Um dia o curioso aqui bateu em sua porta. Primeiro som que ouvi foi de um chinelo de couro pisando de leve na madeira. Fio recebido apenas com um sorriso sem som e um aperto de mão quente.

Me convidei para entrar após esperar o convite que não chegou. Ele não se opôs e apenas segurou a maçaneta antiga com olhos complacentes. Fiquei tão atônito com o que vi que as palavras também sumiram naquele lugar. Esperei que Solidão falasse por nós e não demorou. Ela corria no espaço vazio quase remexendo em almofadas coloridas e enfiando os dedos na fonte em pedra sabão.

Minimamente decorada, a casa pedia silêncios. Só uma corredeira de água era audível e os passos lentos de velho morador. Ele ofereceu um chá e leu em sussurro um haicai falando sobre ouvir o mundo e seus silenciosos moradores. Era na ausência de som que podíamos ouvir os pensamentos. Eu apreendia tudo com o corpo quase saltando de vergonha alheia. Nessa hora minha companheira Solidão batia no vidro deixando o peixe vermelho agitado.

Entrei em silêncio profundo quando entoou um mantra desenhando em papéis brancos. Esqueci meus traços primários e fui invadido pela poética dos gestos ligeiros daquele homem que pouco falava. Sua mão carregava seguramente o longo pincel tracejando o preto no alvo papel. O silêncio abraçou Solidão quando seguia com olhos sorridentes aquele velho com um risco profundo e solitário.

Nada perguntei. Ele falou duas palavras. Silêncio e mente quieta. Minhas mãos pausaram em reverência. Meu novo amigo deixou o espaço. Eu fiquei ali olhando as luzes indiretas, água na fonte, traços no chão e minha amiga Solidão com boca aberta sem um único som.

Se o silêncio trouxe mais uma parte do conhecimento, minha tarefa será descobrir nas palavras seu melhor sentido. Como quem não quer nada, quanto menos espero elas chegam. O silêncio trouxe palavras. Quanto menos palavras lançadas menos colonizo os outros. Quem gostou foi Solidão. Teria guarida em minha casa por um longo tempo.

Eu, sendo vizinho do silêncio, procuro as palavras em cantos recônditos. E eu vizinho do silêncio, procurando as palavras em inúteis cantos. Meu desenho foi em carvão. Preciso voltar à terra.

André Soltau é doutorando em Patrimônio Cultural (Univille/SC), historiador (UFSM/RS) e mestre em Educação (UFSC/SC). Atuou como professor de ensino fundamental e deu aulas em diversos cursos do ensino superior. Publica livros, em gêneros variados, desde 2002. Pela Kotter, assina – em parceria com Kátia Nascimento – os contos de Fio do silêncio (2022). Mensalmente, lança textos inéditos na Revista Sucuru – Literatura e Arte Contemporânea.

10 respostas

  1. Amo música, miados e latidos que provém da minha casa. Mas tem muitos momentos que degusto os sons dos silêncios, das pausas.

    Andre, sei que vc já tem certeza, mas vou repetir: amo seus textos.

    1. queridoonnnnnnnnnnnna amiga mineira. Delícia de saber que anda por aqui. … e lá se vão décadas de leituras à distância. Beijão e sempre grato pela tua generosa leitura.

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