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Um cenário de conto de fadas naquele verão sob o céu de Paris. O casal Sampaio Vidal de tradicional família de usineiros de Araraquara morando num casarão construído por Ramos Azevedo próximo à Paulista ocupavam um dos assentos do voo 820 Rio-Paris no 12 de julho de 1973. Prometeram-se a viagem dos sonhos para comemorar as Bodas de Ouro. Era o máximo de júbilo ao bom-gosto discreto dos endinheirados. Nem sonhar submergir para a morbidez em visitar destroços do Titanic. Podiam espreitar nas poltronas laterais algumas celebridades.  Agostinho dos Santos dulcíssima voz à altura de Nat King Cole e do amigo Johnny Mathis seguia em excursão europeia para levar o melhor da bossa-nova com seu tom de pura poesia. Logo ao lado um senhor carrancudo: ex-presidente da Arena, partido de sustentação da ditadura militar e ele mesmo eminência parda de outra ditadura, chefe da polícia secreta de Vargas.  Filinto Muller, infame torturador no Estado Novo, sua cara de maus bofes expressava as sombras que passavam-lhe pela cabeça. Entre 117 passageiros e 11 tripulantes, uma beldade feminina se destacava: Regina née Rosemburgo, ex-Wallace Simonsen e na ocasião casada com o magnata da moda Gérard Léclery, figura onipresente do jet-set internacional ao lado de Porfírio Rubirosa, musa de Dalí, habitué dos Rotschilds, uma personagem digna de Proust. Regina estava entre as seletas comensais no derradeiro weekend dos Kennedys em Palm Beach em 63 antes de Dallas. Despreocupados os viajantes liam nos jornais sobre os estertores da Guerra do Vietnã e rumores sobre um novo conflito no Oriente Médio, a Guerra do Yom Kippur. No Brasil o delegado Fleury fazia as vezes de Filinto Muller de plantão nos subterrâneos do Dops. No toilette uma nada inocente bituca de cigarro deflagra um incêndio incontornável a um quilometro do Aeroporto de Orly. Na desesperada aterrissagem numa horta de cebolas quase todos passageiros mortos impotentes diante da fatídica inalação tóxica. Enquanto 10 tripulantes abrigados na cabine do comandante Gilberto Araújo sobreviveram pela saída de emergência, um passageiro que se recusara permanecer sentado aninhou-se no chão da cabine protetora. Ricardo Trajano hoje aos 73 anos ficou para contar sobre esse ímpeto salvador. O piloto Araújo sucumbiria a outro acidente em 1979 na rota Tóquio-Rio sobre o Pacífico. Mesma tragédia onde se perderia um imenso acervo do celebrado pintor Manabu Mabe. Nossa era é marcada por mortes em conjunto, na maior parte frutos das grandes façanhas e avanços tecnológicos. Um ano antes tinha sido o voo com Leila Diniz, mas Agostinho dos Santos parecia tão onipresente num Brasil que mantinha algum lustro dos anos dourados sob o horizonte plúmbeo da ditadura, que marcou ao jovem poeta a perda do aveludado de sua voz. Quantos sonhos cabem numa manhã ensolarada, quantos desenlaces, quantas esperanças num átimo de segundo?  A tudo um grande poema, recordo de “Morte no avião”, de Drummond, sempre Drummond. “A morte dispôs poltronas para o conforto da espera. Aqui se encontram os que vão morrer e não sabem.” Todos vão, mas na sua exuberância prateada há os que estranhos lado a lado vão ter a hora que tudo finda irremediavelmente juntos. E como na canção caem indiferentes “vem o sol e os pingos da chuva que ontem caiu…”

Flávio Viegas Amoreira é prosador e poeta. Pela Kotter, lançou as narrativas breves de Apesar de você, eu conto e os versos de Whitman e Pessoa, meus camaradas.

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