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Pelas mãos de Pagu ungidos nos festivais dos anos 50 em Santos surgiram dois dos nomes mais viscerais do teatro brasileiro: o conterrâneo Plínio Marcos e José Celso Martinez Corrêa. Como numa corrente de forças dionisíacas foram os três a colocar a brasilidade em campo no teatro. Todos espectros foram depois radicalmente contemplados no mais audaz laboratório de experimentos estéticos da América Latina: o Teatro Oficina. Nenhuma grandiloquência. Que outro espaço cultural humano demasiado humano tem a longevidade revolucionária exercitada cotidianamente a 65 anos de rupturas num espaço urbano que em tudo conspira contra a erupção criativa? O Oficina foi visionariamente o casamento da vanguarda com a ancestralidade, do profano e o sagrado sem concessões aos gemidos da tradição esterilizante da burguesia.

Desnudamento das almas

Zé Celso é o último vórtice de avatares dum Brasil ainda possível que tinha Darcy Ribeiro e Glauber Rocha como expoentes de todas auroras abortadas e por parir na Arte e no desnudamento das almas. Vibro saber que a terra de Cacilda Becker e Margarida Rey celebra o xamã dum mundo em transe, transmoderno, no Festival de Cenas – Fescete. O Teatro Oficina antecede e anuncia todas nossas lutas pelo resgate do chamado da floresta, a sabedoria de Kopenawas e Krenaks, o grito dos resilientes da quebradas. Ali encravado no Bexiga a pequena África de Piratininga nos caminhos da trilha mítica do “Peabiru”, que ligava São Vicente aos caminhos dos sertões foi erigido o culto grego-brasílico de sagração da Arte totalizante corpo-espírito da utopia oswaldiana.

Sociedade doente

Zé Celso conseguiu nos trópicos o sonho de Maiakovski e Lorca de civilizar teluricamente pelo teatro. Não a civilização tecnicista, a civilização deleuziana da criação incessante onde artistas somos sacerdotes duma sociedade doente pelo mercantilismo dos corações e mentes. Um governo popular de novo instalado precisa reconhecer no Oficina e todo seu entorno o cadinho para esse reencontro entre a megalópole e a Mata Atlântica. Um templo espraiando espetáculos pedagogicamente combatentes da impostura capitalista que repudia o encanto em nome da sociedade de mercado. Foi no Oficina a revitalização militante do nosso ethos de criatividade militante: gozozamente fazendo vibrar a oralidade e a imagética que colocam Zé Celso só à altura do Padre Vieira e “Qorpo Santo” em pensamento original posto em ação em Pindorama.

Subversão

É exatamente no instante dum “fascismo high-tech” que a inteligência natural precisa trazer-nos os poderes anímicos, epidérmicos, ritualísticos do teatro como fronteira antropológica diante ameaças da tecnologia, Leviatã duma opressão que nos põem indefesos aos algoritmos das grandes corporações. O teatro de Zé Celso não o de apresentar peças, mas ressignificar ritos para uma comunidade dessacralizada. Trata-se da insistência na subversão dos sentidos insurreitos aos poderosos de plantão. Confesso que no universo literário hoje não encontro correspondente à potência transgressora de Zé Celso. Não transgressão inócua, mas transvalorização de paradigmas fossilizados pelo consumismo e o niilismo paralizante. O Oficina não é só o melhor espaço cênico, é o que faz melhor literatura aplicada, poesia impregnada, o grande salto cósmico entre o Brasil profundo e a força da nossa pós-antropofagia a semear novas percepções de mundo. Evoé Zé Celso!

Flávio Viegas Amoreira é prosador e poeta. Pela Kotter, lançou as narrativas breves de Apesar de você, eu conto e os versos de Whitman e Pessoa, meus camaradas.

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