por Isabel Limongi
É preciso retomar aquela energia de construção democrática que embalou a minha geração – a geração que nasceu na ditadura e cresceu com a democracia, que foi jovem durante a abertura e nela embarcou, seguindo o caminho que já estava semeado, sem suspeitar das sombras que espreitavam.
Para isso, requer-se tratar dessas sombras. Primeiramente nomeando-as, pois este é, no meu entender, o trabalho da filosofia: dar nome aos bois. Com os bois nomeados, fica mais fácil domá-los. E tem um nome, que está na boca do povo, um nome muito bom: neoliberalismo. É o neoliberalismo que nos assombra. Tem-se dito isso e acho que há aí um bom diagnóstico. A produção teórica contemporânea está caminhando para este desfecho – para o momento em que se tira o capuz do malfeitor e sua identidade é então revelada: o problema é o neoliberalismo. Depois de um tempo de certa hesitação sobre a pertinência do conceito (pelo menos de minha parte), já não restam dúvidas de que é um conceito revelador.
Mas, o que é o neoliberalismo? Para autores como Dardot & Laval e Wendy Brown, que seguem a trilha aberta por Foucault em O nascimento da biopolítica, o neoliberalismo não se reduz ao Estado que se retira da cena, deixando o desenvolvimento econômico a cargo do mercado e desincumbindo-se do papel de distribuir riquezas e produzir justiça. O neoliberalismo não se reduz a uma política econômica e não é sinônimo de privatização do que antes era dotado de valor público. O neoliberalismo é muito mais do que isso. É uma maneira de pensar, uma forma discursiva, uma gramática, uma certa racionalidade, um procedimento de produção de verdade, de valorização e legitimação de práticas, uma forma de subjetivação ou uma maneira pela qual os sujeitos se formam, concebem a si mesmos, projetam suas vidas e se deixam governar. Esta racionalidade toma conta inclusive do Estado, submetendo todas as esferas da vida à lógica econômica da competição. O neoliberalismo transforma o sujeito de direito em capital humano.
Em relação a essa maneira de compreender o neoliberalismo, quero insistir menos na forma de racionalidade em questão e mais nas consequências que ela traz para o campo social, seguindo uma trilha aberta W. Brown no primeiro capítulo de Nas ruínas do neoliberalismo, onde a autora diz basicamente o seguinte:
- A sociedade é o lugar por excelência da igualdade democrática, que, por sua vez, é o fundamento da democracia (a referência é Tocqueville, que define a democracia como um estado social igualitário). É também o espaço onde se produzem formas de dominação e opressão. A democracia requer o cultivo da “sociedade como o lugar em que experimentamos um destino entrelaçado (linked) em meio às nossas diferenças e ao que nos separa”; um espaço entre a Estado e a vida pessoal, em que se cultivam formas de emancipação, mas também de dominação.
- No contexto do capitalismo e dos estados-nação modernos, o Estado tem um papel a cumprir na produção e defesa da igualdade democrática.
- A racionalidade neoliberal destrói o social, no conceito e na prática, para colocar no lugar os indivíduos e a família, ao passo que o campo social é visto como invasivo. Gera assim uma cultura não democrática, que prepara o terreno para ascensão de Estados não democráticos.
Quero reter essa ideia: o neoliberalismo envolve a corrosão da sociedade. Isto posto, sigo por minha conta e risco, para focar no caso do Brasil.
Falamos no social, estado social, campo social como o espaço em que a democracia se produz. Gostaria de introduzir outra expressão: tecido social. A sociedade civil é um tecido, feito de vínculos afetivos, morais, econômicos, religiosos, e também de dominação, que pode ter maior ou menor coesão, a trama pode estar mais estreita ou pode estar esgarçada. O Estado tem um papel a cumprir para essa coesão, na medida em que dota o tecido social, perpassado por conflitos e diferenças, de uma unidade simbólica, fazendo do tecido um corpo. Do ponto de vista do Estado, tudo se passa como se fôssemos um corpo, um organismo bem articulado, porque estamos submetidos à mesma Lei ou sistema legal, à mesma constituição e ao mesmo governo. E, sendo assim, é um fator de corrosão do tecido social que o Estado não consiga se oferecer como um representante, um signo da unidade ou coesão do social.
Este é o caso do Estado brasileiro, que é visto como (e é; mas, como ensina Maquiavel, o que importa em política é como as coisas aparecem) violento, corrupto, oligárquico, excludente, arbitrário, autoritário, burocrático, coercitivo. A racionalidade neoliberal vai ao encontro dessas percepções para esvaziar ainda mais o valor simbólico do Estado, colocando no lugar da unidade que ele representa, e com a qual dá coesão ao tecido social, o indivíduo e a família atomizada, como núcleo de desenvolvimento e educação dos indivíduos.
O bolsonarismo nadou de braçada aí – na descrença bastante justificada do Estado e o consequente desgaste do social. E temos que entender o bolsonarismo como algo que reflete a sociedade brasileira. Bolsonaro ganhou no voto e tem popularidade. As pessoas se veem naquela atitude: “não venham me encher com as amarras do social e do coletivo – multas ambientais, restrições sanitárias, ensino público. Sou livre, me garanto como posso, educo meus filhos como quero”. Alguns estão inclusive dispostos a se armar para garantir isso.
E, assim, aquele movimento que já animou a sociedade brasileira, o pulsar democrático que chegou a brotar nela para se realizar, institucionalizar e virar Lei nas estruturas do Estado desenhado pela Constituição de 88, perdeu fôlego e refugou. É preciso reanimá-lo.
Mas isto – e aqui passo do plano do diagnóstico para o da ação (sobre o que não tenho experiência alguma) – não pode ser feito por meio ou a partir do Estado apenas, na forma de imposições legais e diretrizes administrativas. A sociedade tem que se reconhecer nessas leis e diretrizes. Para isso, tem que haver diálogo e participação. Não apenas participação nos espaços já institucionalizados, na esteira da Constituição de 88. Nem tampouco participação na forma da contestação e resistência apenas, por mais importante que seja. Mas participação no sentido de vida social, de criação de institucionalidade a partir da sociedade, de projeto, reflexão e ação da sociedade sobre si mesma. Não dá para realizar um projeto democrático de país sem ir à sociedade, sem ouvir as pessoas e fazer com que falem: conversar, tirar do silêncio e da exclusão, criar espaço público, lugares de encontro, de ação comunitária, de produção de cultura, de reflexão política e social (o que é muito diferente de conscientizar, fazer trabalho de base). É preciso fazer isso nas periferias, nos territórios excluídos do Estado. Juntar pessoas num lugar que não seja apenas a Igreja e deixar que ações coletivas brotem daí (penso por ex. na CUFA, Central única das favelas), deixar que a política aconteça, para que as pessoas se sintam como partes da sociedade que anima a estrutura formal do Estado e sobre a qual essa estrutura trabalha e se projeta, a fim de transformá-la.
Enfim, o Estado não pode ser visto e tratado apenas como um instrumento de desenvolvimento econômico. A disputa política não é apenas entre políticas econômicas e de desenvolvimento concorrentes e sobre o papel do Estado nisso tudo. A ênfase recaiu muito nisso. É preciso combater o neoliberalismo ao resgatar o Estado como instrumento de coesão simbólica do corpo social.
Uma resposta
Hey there! Do you know if they make any plugins to help with SEO?
I’m trying to get my site to rank for some targeted keywords but I’m not seeing
very good gains. If you know of any please share. Thanks!
You can read similar article here: Eco blankets