Fuga
por Bruno Nogueira
1
Nicollas desce do ônibus às 7 da manhã. Recolhe do bagageiro uma mochila enorme, pesada, com saco de dormir e barraca ao topo. Espera que o motorista mascarado deixe no chão sua mochila e volte pro carro. Passa álcool nas mãos, retira sua máscara, e coloca às costas a mochila, que se avoluma acima de sua cabeça. Respira fundo e começa a caminhar mata adentro.
Não existe trilha. O mato quase alcança seus joelhos. Não se importa, mas a dificuldade adicionada a seus passos é maior que esperava. Sente prazer no esforço, no cheiro do mato, no sol leve no rosto e na respiração desimpedida. Estudou o bastante ao longo da última semana e sabe se guiar pelo sol, mas consulta, de qualquer forma, o GPS, e o mapa impresso a partir das fotos de satélite do google maps, segundo o qual há vários trechos de mata mais baixa, alguns bastante secos, antes do rio. Segue com um sorriso. Não sabe onde está, mas sabe que a frente há inúmeros lugares tão apropriados quanto os outros. Está alimentado, hidratado, o cantil cheio e acessível. Conseguirá andar por horas.
Consegue enxergar alguns quilômetros à frente. O boné lhe parece cada vez mais essencial, à medida em que o sol se intensifica. As árvores que vê são separadas por vários metros, sobressaindo-se em meio à mata baixa, e ele tenta caminhar de uma a outra, aproveitar a sombra que oferecem. Encontra uma árvore sob a qual há um espaço vazio, com mata verde e bastante baixa. Não sabe bem por quê, mas lhe parece um bom lugar. Bebe um mínimo de água do cantil, e respira sob a sombra. Tira do bolso a máscara, coloca no chão a mochila, e pega num bolso externo o isqueiro. Nicollas cava um círculo de alguns centímetros no chão, próximo à árvore. Segura a máscara por uma das alças e ateia-lhe fogo. Observa por alguns segundos, com prazer, o enquanto o fogo a consome, e depois a deposita com cuidado no buraco. Espera que termine de queimar por completo e volta a cobrir o buraco de terra.
2
Nicollas decide parar por volta das seis, o sol se aproximando do horizonte, o azul do céu tomando um tom mais escuro. Abre no mato baixo uma pequena clareira, com ajuda das mãos, de uma faca, e de uma pá dobrável que retira da mochila. Antes de acabar, precisa colocar a lanterna de cabeça. De acordo com a pesquisa que fez sobre a região, são raríssimos os encontros com animais perigosos durante a noite, mas ainda assim se preocupa. A terra revolvida é macia, e Nicollas usa a parte de trás da machadinha inox recém-comprada como martelo, e é fácil enfiar no chão os pinos metálicos cujo objetivo é manter a barraca no lugar e lhe dar estabilidade. Pensa em pendurar a mochila na árvore, mas tem medo de que algum animal ou inseto entre nela, e decide trazê-la consigo para o interior da barraca. A barraca não é nova, mas é de qualidade, feita para duas pessoas, e consegue abrigar sem tantas dificuldades Nicollas e a mochila. A saída é uma tela impermeável, e permite que o frescor da noite entre, mas desagrada Nicollas, que consegue ver por ela, ainda que minúsculos, os faróis dos carros que passam na estrada que deixou durante a manhã. Sinais que, além da lembrança, sinalizam que conseguiu andar muito menos que pretendia. Ele vira as costas para a estrada, acende num canto da barraca a lâmpada portátil, e retira da mochila o fogareiro e o cartucho de gás. É uma pena que poderá usá-lo poucas vezes, tão caro foi, mas não quer depender do fogareiro. Promete a si mesmo que, a partir de amanhã, só será usado em caso de necessidade. O calor do fogareiro é tão grande que ele se arrepende de tê-lo acendido no interior da barraca, de súbito consciente do perigo de incendiá-la. Desliga num susto. Sabe que acendê-lo lá fora é pior, especialmente a essa hora. Atrator de insetos, risco de incendiar a mata. Retira da mochila a placa de metal, coloca-a no centro da barraca, o mais longe das paredes e da mochila, e coloca em cima dela o fogareiro, que acende no fogo mínimo e que ainda assim tanto aquece o interior da barraca. Nicollas despeja numa panela o mínimo necessário de água, um pacote de miojo, e deixa cozinhar. Pensa no quanto ela detestava miojo, sorri, e deixa de sorrir. Percebe de repente que, com toda a movimentação, acabou mais uma vez de frente para a entrada, e vê nas luzes dos carros ao longe um reflexo das luzes da cidade. Abre a tela, e fecha em seu lugar a lona externa.
O calor na barraca é insuportável.
3
No meio da próxima tarde, Nicollas chega à margem do rio, onde queria ter chegado no dia anterior. Agora, sabe ter superestimado sua velocidade e energia, subestimado o mato e o peso da mochila, ainda que houvesse comprado tudo do mais leve. Antes de montar a barraca, tira suas roupas, pega na mochila a garrafa com boca purificadora, e se joga no rio com ela em mãos. A temperatura da água não é alta, mas com o sol a pino e a leve correnteza, parece perfeita. Nicollas, a essa altura, já se sentia incomodado com o suor acumulado em seu corpo desde o dia anterior, e agora se sente leve, limpo, renovado. A correnteza é leve o suficiente para que seja fácil permanecer no mesmo lugar e para que ele consiga nadar contra a corrente, mesmo segurando a garrafa. Enche-a de água e bebe quase todo o conteúdo de uma vez. Dá algumas braçadas e sai da água alguns metros acima do ponto em que entrou. Começa a montar a barraca. Perto do rio há lugares mais fáceis, pedras e terra dura, não precisa arrancar o mato como antes para montar a barraca. Ainda assim, antes de terminar de montá-la, seu corpo já está seco. Não volta a vestir a camiseta por medo de voltar a transpirar nela, apesar do vento fresco que combate o calor com ajuda das águas do riacho. Passa repelente pelo corpo.
Nicollas joga fora a água do cantil e usa a garrafa de bico purificador para voltar a enchê-lo com água do rio. Questiona a necessidade disso, tão limpa parece a água. Termina de encher o cantil diretamente do rio. Escolheu esse ponto do rio depois de longa e difícil pesquisa, em que descobriu não haver despejo de poluentes em ponto acima nessas águas. Ainda assim lhe pareceu boa ideia comprar o purificador. Decide usá-lo para beber água, mas não para coletar a água que usará no café e nos alimentos, que afinal, será fervida. Talvez a água lhe faça mal a princípio, seu corpo acostumado a águas tratadas e de composição diferente, mas carrega um kit de primeiros socorros com todo tipo de medicamento, e acredita que se necessário, conseguirá lidar. Além de tudo, tem que ser honesto consigo: talvez não fique. Talvez não consiga ficar isolado pelo tempo que gostaria. Não quer de admitir que, provavelmente, não conseguirá. Foda-se. Ficará o máximo que puder. Passará o tempo lendo os livros do e-reader que trouxe, conversando consigo mesmo, e simplesmente sobrevivendo. Se sente mal em ter gasto tanto do dinheiro que lhe coubera com os infinitos apetrechos, mas acha que ela teria aprovado.
A instalação da barraca é tão fácil que Nicollas ainda tem algum tempo antes de anoitecer. A estrada de onde veio não é visível, mas uma outra é. Consegue vê-la ao longe, do outro lado do rio, e por isso a entrada da barraca, dessa vez, virou na direção oposta. Sente a transpiração no rosto. Tenta não olhar para a estrada enquanto pesca com a vara desmontável. Não consegue nada, mas tenta não se preocupar. É a primeira vez que pesca. As ilustrações e anotações que fez no caderninho à prova dágua, as imagens e o vídeo que salvou no telefone são suas fontes, e lhe parece que deve ser algo que se torna mais fácil e bem sucedido com a prática, com o tempo investido. Por agora, de qualquer forma, ainda tem comida, alguma coisa enlatada, miojo, barras de alta caloria emergenciais. Decide que hoje tentará não depender tanto dos apetrechos. Sai em busca de pedras e galhos e isca pra fogueira. Não consegue encontrar a quantidade ideal de pedras, mas consegue um tronco verde de tamanho bom, que mergulha na água antes de usar, por via das dúvidas. Nicollas prepara o ninho usando as iscas que encontrou na floresta, e acende com a pederneira. Treinara várias vezes em casa, e agora, ao conseguir acender sem dificuldades a isca, se entusiasma, e acaba assoprando demais antes da hora e apagando o fogo. Na segunda tentativa, raspa um pouco da barra de magnésio sobre o que resta do ninho, e não tem muito mais dificuldades que na primeira vez. Deposita gravetos cada vez maiores no fogo, que dali em diante assopra com menos intensidade e mais constância. Em pouco tempo, o fogo cresce o suficiente para não se apagar tão fácil.
Nicollas busca a panela na mochila que deixou no interior da barraca, e faz seu primeiro café. Podia jurar que o café da fogueira é bem mais quente que qualquer outro que já tomou, mas talvez seja a xícara de metal, que usa tão raramente. Tira da garrafa térmica que usa como contêiner a sacola em que carrega várias pequenas utilidades, e enche-a com o que ainda resta do café. Lava a panela no rio e volta a colocá-la sobre o fogo. Dessa vez pega na mochila duas feijoadas em lata. Nem agora, depois de tanta pesquisa, sabe por que feijoada é uma das comidas mais comuns de se encontrar enlatada. Despeja as duas latas de uma vez na panela, acrescenta água, e pouco depois está comendo uma feijoada que, se não é a melhor que já tomou, chega a parecer, tamanha a fome que sentia.
Quando Nicollas sente as primeiras gotas, se entristece pela fogueira, que lhe pareceu sucesso tão grande, e que gostaria de alimentar e manter ao menos até a noite funda. A tristeza é tamanha que seus olhos se umedecem. Não entende. A fogueira se apagaria de qualquer modo, poderia fazer outra em breve, e graças a ela economizou o gás do fogareiro e o algodão, pego da penteadeira onde ela guardava a maquiagem e agora misturado com parafina, pra ser usado como isca quando não conseguisse encontrar. Fecha os olhos, sente as gotas da chuva, o sabor da feijoada ainda quente, e se concentra nessas sensações. Lembra-se das praias lotadas que viu nos últimos dias, pensa nas pessoas que agora devem estar fugindo de lá sob a chuva que lentamente se intensifica. Sorri. Termina de comer ali, sob o que ainda é uma garoa, mas quando se levanta a chuva já começa a ter peso. Decide deixar que ela lave a panela vazia que deixa onde está. Volta para a barraca e se assusta ao perceber que deixou a entrada aberta, e que parte do interior está molhada. Nicollas entra, fecha o mais rápido possível a barraca, seca o interior com a camiseta que já não usava há algumas horas. As nuvens carregadas escurecem a tarde ainda clara. Nicollas ouve o ruído da chuva e do rio e vê os infinitos nódulos que as gotas formam ao se chocarem com as paredes da barraca. A temperatura ali dentro, graças à chuva, é refrescante, e Nicollas dorme. Ainda assim, mesmo tendo verificado, não consegue fugir por completo do medo de que algum animal tenha entrado na barraca.
No dia seguinte, o fogo começou.
*Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba. Bruno lançou com a Kotter o seu primeiro livro de contos, A Síndrome do Impostor (2018).
Uma resposta
Um conto maravilhoso assim, tinha que ser de escritor mineiro, rs, excelente narrativa. Forte e emocionante.