Heranças e Esperanças: a Chave da Memória Palestina – Salvio Kotter

Lembranças em Ferro e Fogo

Nas mãos calejadas de uma senhora, uma chave robusta, emoldurada pela história e pelo sofrer, se destaca como um arauto silencioso de uma narrativa de perda e resistência. A chave, significativa e pesada, não apenas abria as portas de uma casa em Jerusalém, mas também desencadeia uma torrente de memórias que revelam a continuidade e os fragmentos de uma existência outrora negada. A senhora, protagonista dessa rememoração, era ainda infante quando assistiu, impotente, ao escorregar de seu lar ancestral entre seus pequenos dedos.

Através das palavras lentamente delineadas no ar quente de uma sala apertada, emerge o retrato de uma Palestina de outrora, entalhado nas rugas do seu rosto cansado. Cada objeto-memória é um pedaço desse vasto mosaico do passado; dentre eles, a chave grande, escura, de ferro, detém o posto de relíquia: a concretude de uma esperança que, mesmo desafiada pelo passar dos anos e pela permanência no campo de refugiados Dheisheh na Cisjordânia, teima em não se apagar.

A Chave e a Nostalgia da Volta

No semblante daquela senhora, cujas histórias se costuraram no tecido-tempo, brilha a inocente crença de que a volta ao lar seria possível. A chave carregada por décadas é mais que um simples objeto; ela personifica a tenacidade de um povo em não esquecer suas raízes, mesmo quando arrancadas brutalmente por mãos alheias. “A gente acreditava que ia voltar”, confessa ela, com um sorriso que mistura melancolia e esperança.

A Cisjordânia, lar temporário e involuntário, serve de cômodo saturado com o peso de anos sedimentados em deslocamento. O calor que se espalha pela sala é tão intenso quanto as emoções que reverberam no ar: físicas e metafísicas, tangíveis e intangíveis. O confinamento espacial aparenta contradizer a vastidão das aspirações e anseios que o povo palestino mantém vivo. Em meio a isso, a chave simboliza uma resistência que transcende o material e se torna intrínseca à identidade de uma nação.

Desapropriação e Desesperança

A partilha de 1947-48 marcou o início de um período sombrio para os palestinos, com uma limpeza étnica meticulosamente orquestrada e friamente executada. Segundo historiadores como Pappé e Khalidi, a expulsão de aproximadamente três quartos de milhão de palestinos e a demolição sistemática de centenas de aldeias foi um golpe devastador para aquela sociedade.

A história cruza com violência o caminho desta senhora, reduzindo-a a uma cifra na contabilidade de uma tragédia coletiva. O relato frio dos métodos empregados: ameaças, massacres, terror, evidencia a calculada estratégia de erradicação de uma presença ancestral no território. E, assim, a chave que uma vez abriu portas para um lar agora parece abrir um portal para um passado cujo fim é incessantemente adiado.

Campos de Refugiados: Geografias de Espera

A realidade é clara como a luz árida do Oriente Médio: a maioria dos palestinos foram relegados a uma existência de apátridas, de refugiados, espalhando-se por diversos países sem nunca realmente encontrar um lugar para chamar de lar. Os campos configuram-se como antessalas eternas de um destino que se mostra cada vez mais nebuloso.

No tecido urbano desses campos, as ruas estreitas e as casas enfileiradas são a cartografia de uma espera angustiante. Janelas quebradas contam histórias não apenas de degradação material, mas também de um processo de fratura social e cultural tão violento quanto os disparos que sulcam suas superfícies. Em Dheisheh, assim como em outros campos, vidas são vividas na intersticialidade de sonhar e desesperar, numa linha tênue entre o acalentar do passado e a incerteza do futuro.

O Desafio do Retorno e da Identidade

Ressoa com insistência a reivindicação pelo direito de retorno à casa, um direito solidamente amparado pela resolução 194 da ONU. A senhora palestina, com sua chave e sua história, não demanda apenas um teto; o que ela busca é a restauração de uma identidade estilhaçada, de uma cidadania que lhe foi arbitrariamente subtraída. Contudo, o seu legítimo pleito é recebido com hostilidades e acusações, como se reclamar a aplicação da justiça internacional fosse um delito.

Será que a articulação de uma demanda por reparação implica necessariamente uma condenação do Estado de Israel? A perspectiva de alguns parece ressoar com uma interpretação deturpada, onde o exercício do direito se transmuta em acusação. A dualidade é cruel: permanecer em silêncio seria aceitar a subjugação, mas elevar a voz é se arriscar a ser rotulado de criminoso.

A Narrativa da Resistência

Neste cenário de conflito perene, a senhora palestina, e tantos outros como ela, podem ser vistos através de uma lente distorcida de antissemitismo, simplesmente por lutarem pelo reconhecimento de uma injustiça histórica. A insistência em demandar o cumprimento da resolução 194 é encarada como uma afronta por aqueles que veem em cada gesto de reclamação uma ameaça à legitimidade de Israel.

A resistência palestina é, então, tecida com os fios do paradoxo, onde a demanda por direitos fundamentais, por uma vida digna, é criminalizada. A antiga chave enferrujada é elevada, assim, à condição de símbolo das profundas cicatrizes desse povo, e também de seu desafio inquebrantável de não sucumbir diante do apagamento sistemático e da espoliação de sua própria narrativa.

Ao entrelaçar o pessoal e o político, a senhora com sua chave em Jerusalém se torna mais do que uma testemunha de sua época; ela é um clarão de desafio numa longa noite de esquecimento.

 

Fontes de dados utilizadas: As informações e contextos históricos abordados neste artigo foram embasados em trabalhos de historiadores renomados como Ilan Pappé, Nur Masalha e Rashid Khalidi, eclipsados em um texto de Berenice Bento. As estatísticas relacionadas aos campos de refugiados palestinos foram referenciadas de acordo com relatórios e dados fornecidos pela ONU. A narrativa pessoal entrelaçada no artigo teve como ponto de partida uma experiência real, vivenciada em agosto de 2015, na Palestina.

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