JULHO DE 2020 – PARTE 2

por Bruno Nogueira

            A geladeira que era do velho tem água, manteiga barata, pão de forma, uma vasilha da comida que a enfermeira fazia e levava por dó, e as caixas de insulina — além das cervejas que Damiano deixou na última visita ao velho. Pega uma lata, abre, enche um copo americano. Pela primeira vez olha com curiosidade as caixas de insulina. Um frasco, fora da caixa, parece ter um resto só, uma linha de líquido pouco que Damiano, sobrancelhas franzidas, olha com curiosidade por alguns momentos — mas decide que não é hora de se preocupar. Vira o copo de olhos fechados, suspira, enche o copo. Para de pé na porta que leva à sala pensando em como as casas pequenas do século passado eram tão maiores que as casas pequenas do nosso. Senta-se no sofá de dois lugares, estica os pés e os apoia no sofá de três, liga a TV de tubo para ter o que fazer enquanto espera a enfermeira.

            Mal escolhe um canal e se levanta. Busca na geladeira outra cerveja. Não lembra quando relaxou assim. Antes pensava o mês seguinte com cálculos precisos, economizando a cerveja, e agora, de repente, podia ter planos. Uma geladeira nova no lugar daquela — sem aluguel conseguiria dividir, e podia vender tanto essa quanto a que tinha na casa alugada. Uma diarista para dar jeito na casa, trocar aquele chuveiro por coisa melhor — disso Damiano sempre fez questão —, trazer a tela plana e jogar no lixo aquela TV de tubo. Mesmo a cozinha nua e fria tinha mudado a seus olhos. O vazio de antes era símbolo de incapacidade, prelúdio da morte; o de agora era o vazio rico que precede a mudança, espaço para o novo. Acaba terminando ali mesmo a segunda lata, dispondo mentalmente na cozinha móveis novos, ainda inexistentes, e móveis antigos, a trazer da casa cujo último aluguel já está pago.

            Volta à sala e vê pela porta aberta a enfermeira que entra. Contou da morte do velho por telefone, e ela veio a seu pedido entregar as cópias da chave com as quais abre agora o portão, para buscar uma ou outra coisa sua que ficou. Sempre foi severa, mas olha agora Damiano com uma expressão que ele não reconhece, crispa os lábios, puxa-o, abraça-o, ele, alto mas sempre encurvado, estranha o carinho repentino, devolve o abraço por reflexo. Ela sempre tinha levado a mal a presença de Damiano, como se fosse dele a culpa da distância, mas agora o ciclo do abandono tinha se fechado. Na infância, o abandonado é o filho; se o pai envelhece o suficiente pra dar pena, os papéis se invertem, e passa o filho a ser o negligente, o responsável pelo abandono, aquele que nega o perdão. Finalmente, o pai morre e o filho se liberta. Se perdoou, é outra vez o abandonado, bendito em sua santidade; se não, deverá carregar, ainda, a culpa. Até a cerveja em sua mão, que a enfermeira achava obscena na casa do velho diabético, ela agora perdoa. Talvez lhe pareça algum tipo de consolo.

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