Ao buscar as balizas externas necessárias a um caminhar compartilhado e orientado, o indivíduo contemporâneo notará que as pessoas que o cercam estão igualmente confusas, igualmente solitárias, resignadas a um todo aparentemente sistemático que não compreendem, ou embotadas numa ignorância voluntária que reduz suas existências a objetivos instrumentais e à competição sexual e econômica. É neste contexto no qual se encontra que iremos encontra-lo largado à sua própria sorte, buscando um sentido pessoal à sua vida plena de atividades em meio a um desespero difuso, cujo fracasso nós já podemos antecipar. Esse esforço solitário por dotar a vida de algum sentido pessoal exclusivo em um todo que parece não existir equivale ao esforço da célula que foi isolada do tecido e se sente livre, enfim, para viver sua autonomia, sem se dar conta de que a sua própria constituição não pode ser concebida sem seu lugar no todo pressuposto. Essa célula sem o todo pressuposto é o indivíduo idiossincrático, é aquele que obsessivamente procurará uma explicação individual para a existência própria, é o que superporá a sua vida psíquica ao complexo sistema social, é o que superporá as relações sociais às experiências existenciais. Se a idiossincrasia é a característica comportamental peculiar do indivíduo atual, na sociedade de indivíduos, na qual o todo orgânico é pensado como inexistente, tal como uma sopa de células, somos todos parcelas idiossincráticas.
Verão de 2021
184 páginas
ISBN: 978-65-89624-12-7
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Uma forma de lidar com o fato da indeterminação sem que tenhamos que nos fixar dogmaticamente numa vontade compulsiva de verdade, numa natureza determinante ou numa revelação de transcendência benevolente, estando mesmo abertos à sua real possibilidade, é tentar replicar as vivências da interação do indivíduo com outras subjetividades circunstantes e suas percepções por meio de metáforas. Para o indivíduo idiossincrático de nosso tempo, e só de nosso tempo, este pode ser um caminho em direção a um quadro mais abrangente de sua circunstância, sem que o sofrimento por indeterminação o conduza necessariamente ao dogmatismo, sem que o relativismo o conduza como uma bússola sem ímã e sem que o subjetivismo o sufoque em seu excesso psíquico. Essa intimidade traduzida em metáforas, tão estranha quanto próxima e comum, é o objeto desse ensaio de literatura especulativa.
João da Cruz Gonçalves Neto é professor na faculdade de direito e pesquisador no programa de pós-graduação em direitos humanos da Universidade Federal de Goiás.