Giovanni Boccaccio conta que quem via Dante nas ruas comentava: “aquele ali esteve no inferno”. Agora dirão isso de você.
Em italiano, “obra” e “ópera” são opera. Dois sentidos, uma palavra. Em português, trouxemos do latim as duas formas. Seja uma obra ou uma ópera, esta parte da Comédia que você tem em mãos é uma, una, mas múltipla, feita de esforços vários, composições de vozes, cantos, orquestras e orquestrações, camadas sobre camadas, interseções e permeabilidades que tramam um tecido que viaja no tempo sem perder a cor.
De modo que é possível falar da Comédia desde muitos fios. Se ficarmos apenas nas duas pontas da vida, podemos partir do início, da elaboração dantesca diante de um pergaminho em branco, ou podemos partir, setecentos anos depois, da tradução de Milton de Andrade e sua tarefa de traduzir e de trair bem, de trazer e dizer, de tradizer e transdizer e transduzir. É tanta travessia. Eu poderia continuar deslizando pelos significantes da tradição e da transdicção, mas opto por conter o gozo trocadilhesco e me deter na travessia da obra e da ópera que é a Comédia de Dante, que funda uma língua através de uma épica e atravessa épocas, chegando ao litoral da contemporaneidade com a força de sete séculos, cujo acúmulo de tempo, capaz de desbotar qualquer imagem, acaba por revigorá-la.
Falamos aqui de muitas travessias: do autor, da obra, da língua, do leitor. Este último entra na Comédia de um jeito, sai de outro, percebendo por que travessia se liga – inclusive etimologicamente – à experiência. Se muita coisa passa diante de nossos olhos, experiência é o que se passa em nós, que nos perpassa e atravessa. Ao final da leitura, entendemos o que levou Boccacio a chamar, tempos depois, a Comédia de Divina.
Divina porque potente, ciente, presente lá no XIV como cá no XXI, divina porque, afinada à teogonia cristã, propõe trindades na unidade. Se Deus é uno, mas tripartite, há uma, una e única Divina Comédia, que é Inferno, Purgatório e Paraíso espraiados em tercetos. Três é número sagrado e célula constitutiva da unidade.
Neste Inferno que agora você carrega – nas mãos ou nos ombros –, o físico e o metafísico tecem um além feito de matéria e mística, um além subterrâneo que desce em espiral vertiginosa aos nove círculos infernais e um além que emerge para remeter outra vez à travessia que obra e leitor se proporcionam mutuamente. Trata-se de uma jornada que propõe ir além de si mesmo.
Além de tais aléns, também Dante, em sua travessia, vence a morte e atinge o eterno. Seu próprio nome é contração de Durante. É esse Durante degli Alighieri que mais uma vez nos põe a pensar sobre duração, sobre aquilo que, no tecido dos inúmeros presentes do tempo, perdura.
Por pouco não termino essa breve apresentação pedindo ao leitor que dê uma chance à Divina Comédia. Pretensão, arrogância. É a Divina comédia quem está aí, dando-nos mais uma chance, em tradução acurada e próxima ao leitor contemporâneo, amigável sem ser paternalista. Aqui é o Inferno quem generosamente nos convida.
Cezar Tridapalli
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Milton de Andrade, ator, diretor e pesquisador em teatro, professor titular da Universidade do Estado de Santa Catarina, com graduação em Psicologia na Universidade de São Paulo, doutorado em artes cênicas pela Universidade de Bolonha e pós-doutorado em antropologia cultural pela Universidade de Palermo.
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