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Há dez anos, Alcindo, casado com a companheira de vida, pai de quatro filhas e avô de três netas, se encontra entre a vida e a morte. De um segundo para outro, após um tropeço banal na escada de casa, o personagem desse romance de cunho filosófico se vê obrigado ao confronto inescapável com a voz que persiste e o habita com vivacidade invejável. Se o corpo já se entregara, confinado organicamente ao leito, a linguagem — morada do ser — passeia livremente, dando voz a divagações filosóficas, lamentos memorialísticos, saudosismos ingênuos, desejos, sonhos e questionamentos acerca da medicina e da tradição religiosa. Por meio da forma literária, Genisson nos oferece aqui uma incursão reflexiva acerca da linguagem e de sua inextrincável relação com a vida e com a morte.
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“Para mim Deus é um ponto, e não uma linha. A nossa tradição transformou Deus em linha. Uma linha que nos acompanha a todo instante no vagar das horas, desde nosso nascimento até a morte. Nascemos graças a Deus, crescemos graças a Deus, conseguimos emprego graças a Deus, temos filhos graças a Deus, morremos porque Deus sabe a nossa hora, amém. Nascemos e morremos sob a égide dessa metafísica máxima e poderosa, essa linha que nos acompanha acima de nossas cabeças nos protegendo e nos resguardando. Um ponto também é uma linha. Só que em profundidade, e não vemos essa linha desenrolada horizontalmente no tempo. Mas é uma linha, só que infinita, sem fim. Um ponto nos olha olhando o ponto, escondendo-se quase que totalmente, mas revelando-se apenas no toque delicado que suspende nossa voz, nos obriga a silenciar, mesmo que para respirar e continuar. E se Deus é, antes de tudo, uma palavra, Deus é, antes de tudo, linguagem. As pessoas leem Deus em linha reta. Mas Deus não é leitura, é escrita. E escrever é um ler atrasado, sempre atrasado. Deus só se manifesta no atraso. O amor profundo não precisa ser lido, proclamado, clamado e invocado. Ele é, simplesmente é. Ponto. Ele nos captura no atraso de ser ao escrever. Ele nos é sendo. Ele é em silêncio e no silêncio, e nos diz sem nos dizer. Ele é infinito, puro e poderoso. Deus é atmosfera, e enquanto atmosfera, indizível e intransmissível. Não adianta nos debatermos tentando ler Deus. Ele só nos encontra no atraso, na escrita da vida.”
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Entre o traço e o apagamento
Autor: Genisson Angelo Guimarães
1 ed. – Curitiba : Kotter Editorial, 2024
144 p. : il.
ISBN 978–65–5361–313–3
R$ 59,70 R$ 41,79
Entre o Traço e o Apagamento, de Genisson Angelo Guimarães, é um mergulho filosófico nas profundezas da condição humana, explorando a vida de Alcindo, um homem confinado pela imobilidade após um acidente aparentemente trivial, mas que precipita uma crise existencial profunda. Esta obra não é apenas um romance; é uma exploração crua e visceral dos limites da linguagem, da identidade e da consciência de nossa mortalidade.
Alcindo, paralisado e confinado a um leito, confronta-se não apenas com a iminência da morte, mas com um tipo de vida em suspensão que Guimarães descreve com um brilhantismo perturbador. A narrativa se desenrola através dos monólogos internos de Alcindo, onde ele reflete sobre a desumanização enfrentada por pacientes em estados graves de saúde e a alienação de sua própria agência.
Um dos maiores triunfos do livro é sua habilidade em capturar a essência da linguagem como morada do ser. Alcindo, embora imobilizado, encontra voz em um fluxo de consciência que é tanto sua prisão quanto sua única forma de liberdade. Guimarães usa essa técnica para questionar não só a identidade pessoal, mas também a maneira como construímos e deconstruímos nossas vidas através das palavras.
As reflexões de Alcindo são pontilhadas com alusões a filósofos como Heidegger e Schopenhauer, além de escritores como Beckett, mostrando como a literatura e a filosofia se entrelaçam na busca por significado. O livro é uma exploração do “ser” em seu estado mais puro e complexo, discutindo temas como a autonomia, a memória e a inevitabilidade da morte.
O estilo de escrita de Guimarães é denso e exigente, repleto de complexidade e nuance. Através de um diálogo interno rico e evocativo, ele convida os leitores a enfrentarem suas próprias inquietações sobre o isolamento, a mortalidade e o significado da vida. A obra é um convite à reflexão, que permanece com o leitor muito depois de terminada a leitura.
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Sobre o autor:
Genisson Angelo Guimarães nasceu em Maceió, estado de Alagoas, em 1978. Médico psiquiatra, terapeuta, escritor e filósofo clínico, lançou seu primeiro livro na Espanha, no ano de 2014, Cuentos & encuentros, entre la esencia y la realidade. Em 2015 a obra foi lançada no Brasil e em Portugal com o título Contos e encontros, entre a essência e a realidade. Em 2017 lançou o segundo livro de contos, A borboleta amarela e o mendigo. Em 2023 foi a vez do primeiro livro de poesia, Gestos do instante, já pela Kotter editorial. Entre o traço e o apagamento é o primeiro romance do autor.