Falta temporária – Sob encomenda
Pandemônio é uma das primeiras manifestações literárias que li provocadas pela ou no contexto da pandemia que vem transformando 2020 em um daqueles cronônimos capazes de impactar […] O poeta Edson Cruz tem muita consciência desse tempo presente que o marcou: ele e sua família enfrentaram o COVID-19, conheceram os percalços da contaminação, sobreviveram. Existe em Pandemônio, portanto, uma tensão forte sobre o momento, o instante, a conjuntura de um corpo e de um lugar alterados e ameaçados pela intrusão. O poeta descobre, como se houvessem acendido um holofote à sua frente:
não há lugar seguro para a vida
no mundo (“Refúgio”)
É isso: o mundo, que deveria abrigar a vida, que antes servira para nutri-la e expandi-la, é agora uma zona de perigo, uma área de exclusão. […]
Ocorre que o poeta – mais ainda, por ser poeta – não fica alheio às cintilações de uma recuperação: no plano pessoal, espera-se a cura; no entanto, é no plano bem mais vasto da esperança que ele vislumbra uma via de escape. Em Pandemônio, logo se percebe a pulsão do contingente sendo paulatinamente trocada pela transcendência. […]
Felipe Fortuna (poeta, crítico e diplomata), na apresentação.
“Um livro para ler, reflectir, rezar e encommendar a alma, ou para sentir cheiro de enxofre, caso o leitor prefira a proximidade mais gravitacional…”
Glauco Mattoso
PANDEMÔNIO
as garras da noite infiltraram-se
sorrateiras
na hesitante luminosidade
dos dias.
a lição que nos ensina
com seu manto de névoas
não será fácil assimilar.
em tempos de trevas
mitologias e religiões confundem-nos
ainda mais.
os sonhos foram expulsos
e le cheval noire de la nuit encarcera
todas as imagens luminosas.
o que engendramos em vigília
já não inspira qualquer transcendência.
pode ser que não sejamos mais humanos
e alguma mutação ôntica já tenha
se instaurado.
talvez não seja mais possível zombar
da multidão de deuses
nem esquecê-los.
quiçá tenhamos de lhes fazer libações
para domesticar a legião de demônios
que despencou dos palácios de Satã.
o que se instaurou sobre nós
é o informe Caos à espera
de algum demiurgo.
uma símile corrompida do Paraíso Perdido
com versos que eliminaram
qualquer possibilidade
de redenção.
**
OROBORO
apesar de já conhecer
o fim da jornada
volto-me sobre mim mesmo
como quem não quer nada
e perfaço distraído
todos os momentos
da viagem.
***
CÉU DE VAN GOGH
as estrelas cintilam
alheias
à miséria dos seres.
Primavera 2020
ISBN: 978-65-86526-54-7
116 pág.
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Edson Cruz
Edson Cruz é baiano de Ilhéus, poeta e prosador, foi cofundador e editor do histórico portal de literatura Cronópios e, atualmente, do site Musa Rara (www.musarara.com.br).
Felipe Fortuna nasceu no Rio de Janeiro, em 1963. É poeta e ensaísta. Estreou em 1986 com o livro de poemas Ou vice-versa. Desde então, publicou outros livros – mais recentemente, Esta poesia e mais outra, em 2010, de crítica literária; A mesma coisa, em 2012, O mundo à solta, em 2014; Taturana, em 2015; O Rugido do Sol, em 2018, todos de poesia. E a tradução do longo poema inglês “Briggflatts”, em 2016. Diplomata de carreira, já serviu em dois períodos diferentes em Londres, e ainda em Caracas e Moscou. Foi professor de Linguagem Diplomática do Instituto Rio Branco (2009-2018) e é atualmente embaixador