O anjo (ou criatura superior a maniqueísmos), narrador desta novela de José Alfredo Santos Abrão, persegue Fernando Pessoa, que é perseguido pelo mago hedonista Aleister Crowley.
Crowley, que foi considerado pela imprensa britânica como “o homem mais ímpio do mundo”, por sua defesa herética da liberdade individual e espiritual numa Inglaterra anglicana, extremamente conservadora, cunhou a célebre frase cantada por Raul Seixas: “Faze o que tu queres, há de ser tudo da Lei”. É nessa condição de ocultista libertário que Crowley, na novela que o leitor tem em mãos, vai a Lisboa ao encontro de Fernando Pessoa – como de fato o foi, em 1930, movido por uma carta que o poeta lhe enviou, corrigindo dados astrológicos do grande mago.
O encontro, narrado com um misto de pudor e encantamento pelo anjo amoroso criado por José Alfredo (identificável em certa medida com o próprio autor), é explosivo: Crowley, entre partidas de xadrez com o ainda obscuro gênio poético, propõe a Pessoa um jogo mais perigoso. Quer dar um xeque-mate no verdadeiro rei dos homens tolos, a realidade. Em resumo, propõe ao bardo (aos bardos, porque Pessoa, como sabemos, é a difração de um homem na humanidade) que seja cúmplice de seu suicídio. O detalhe é que o suicídio será ficção, como sói acontecer no mundo manhosamente transversal dos magos e poetas.
A proposta inclui um pedido: Pessoa escreverá uma novela policial sobre o falso suicídio, a qual, sendo Crowley um homem famoso, tornar-se-á um best-seller e os deixará ricos. Irrefletidamente, levado pela coceira na mão e pelo arrogante entusiasmo do mago, o poeta concorda com o plano. Eles simulam e divulgam o suicídio (na vida real, havia um jornalista mancomunado com o poeta e o mago). Mas a meio caminho da escrita da novela policial, Pessoa desiste de tudo e, com a ajuda de sua amiga Ophelia Queiroz, elabora um plano B: irá sumir, metamorfoseando-se em seus heterônimos. Crowley, irado, passa a perseguir o ortônimo, mas descobre que para isso terá que sair no encalço de Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Alberto Caeiro… Em outras palavras, o leitor se perde junto com Crowley, vítima dessa espécie de uso “diversionista” dos heterônimos.
Para o bem da “realidade”, a novela de José Alfredo nos leva ao ambiente mirífico de criaturas que, diante de um mundo estupidamente materialista, viveram como personagens salvadores de si mesmos. Aos anti-heróis sublimes, que subvertem a submissão à ordem e à racionalidade, para ressumar este “nada que é tudo”, este ímã indefinível e constelado que são os mitos.
Marcos Pamplona
Inverno 2020
ISBN: 978-65-86526-07-3
84 pág.
R$ 39,70 R$ 27,79
José Alfredo Santos Abrão
José Alfredo Santos Abrão (1958) é paulistano. Em poesia, publicou Pegadas de palavras (ed. do autor, 1991), Dias com nuvens (ed. do autor, 1999) e Três poemas esparsos em tercetos imperfeitos (Semprelo, 2019), todos editados em Florianópolis. Em prosa, publicou a novela Outro norte profundo (Barabô, Salvador, 2012), Cronomáticas e outros contos (Cepe, Recife, 2016) e Sete relatos enredados na cidade do Recife (Laranja Original, São Paulo, 2019). Recebeu os prêmios 100 Anos da Semana de Arte Moderna (MinC, 2018) e 200 Anos da Independência (SeC, 2019). José Alfredo vive e trabalha no Recife, atuando em produção cultural e serviços de comunicação.