por Gabriel Rachwal
A antologia poética de Marcelo Sandmann, que recobre trinta anos de sua produção, se abre com um poema que prepara o leitor para a concisão que marca essa poesia. O singelo asterisco que faz as vezes de título de tal poema pode ser lido como uma nota de rodapé promovida a introito da celebração da lucidez na lida com a língua que é o estado constante dessa lírica. O rodapé, comumente abrigo dos detalhes, das minúcias, das explicações mais ou menos dispensáveis, não existe numa poética em que nenhuma quebra de verso ou pingo de “i” pode ser desprezado. No intervalo entre um verso e outro (o vasto branco do papel) ou bem ali atrás do pingo dum “i” pode estar uma dor de trinta anos de duração ou a luta corporal com o turbilhão da vida, da língua e dos significados delirantes e dilacerantes que desafiam constantemente esse poeta que insiste em escrutinar essa zona toda (permitam-me aqui a informalidade, que também tempera a poesia em tela) sem ceder à sua lógica. Do manejo da minúcia linguística vem as faíscas das sucessivas implosões que o eu lírico contém e convida o leitor a também conter, sem
extravasar. Será assim que uma corda de instrumento arrebentando num concerto que serve de mote a um dos poemas se transformará em experiência vertiginosa de uma subjetividade que, exercitando o máximo domínio sobre os recursos poéticos, poderá fruir-se, contente do teste dos limites da sensibilidade.
Faz jus ao poeta examinar um pouco mais de perto o asterisco de abertura, testando seus limites, suas oportunidades de rebentação vertiginosa. A primeira estrofe já dá o andamento substantivo de todo o poema: “Concisão de luz, / lâmina precisa”. No teatro, a associação de refletor com lâmina dá exatamente precisão à luz que, então, recorta o espaço sem hesitação, seccionando de modo a flagrar o que interessa. Do indistinto do palco, a luz seleciona a matéria como um bisturi na investida dumabiópsia arriscada. É a isso que Marcelo se propõe por meio da língua. Nesse poema amputado de verbos, os substantivos se acumulam, ordenados pelos versos, pelas vírgulas e pelos pontos-finais. Qualquer verbo seria deixa para um aspecto acional ou processual que poderia tornar difuso o limite entre luz e sombra e pôr em risco a precisão. Detanhamo-nos, leitores, diante do corte proposto, conforme a segunda estrofe: “Claustro o corpo, / o fôlego / sílaba exígua”. Mesmo um verbo de ligação seria demasiado. Para a expressão do que se passa com a sensbilidade desse corpo restringido, o fôlego é escasso, mas depende dessa própria escassez a eficácia da expressão, que vem a ser, então, “Exposição de vísceras”, verso que encerra o poema e abre caminho para a antologia, para as entranhas da obra, fazendo o convite para que do claustro que é corpo conheçamos as vísceras.
Nessa exposição, terá algum pudor o poeta que, bom sabedor da lição de que os acontecimentos ainda não são poesia, em alguns momentos mostrará autoironia e, portanto, procurará sempre a medida certa, a cutilada precisa, desferida com força exata. Quando revisita a tópica da aurea mediocritas, por exemplo, dá notícia do entendimento que orienta os movimentos do seu bisturi de poeta que, meditando o que é que cabe à poesia, não se entrega à gratuidade (“Um pouco mais / que simples brinquedo”) e nem perde a lucidez (“Um pouco menos / que alucinação”), encontrando o caminho moderado na solução tipográfica singela do verso que diz “f ó s f o r o” e, deslocando-se em relação aos demais versos do poema, aproxima-se do centro da página e revela, pelo recurso aos espaçamentos entre os caracteres, o que vai ao redor, que é o branco amorfo da página e, analogamente, a escuridão aonde as palavras não chegam mas que podem iluminar, ainda que pelo curto tempo da duração da chama de um fósforo.
A poesia de Marcelo Sandmann, então, vai se mostrando verdadeira lição de sobriedade que impede a língua de perder o lastro na materialidade, na sensibilidade a que se oferecem as realidades mais mundanas e intranscendentes. O trabalho poético fica sendo, antes de mais nada, ter os pés bem fincados nesse real e senti-lo, sem esquivar-se à dor que lhe for inerente e, então, forjar (no bom sentido do fingimento, do domínio da ars necessária à composição dum poema) o prazer. Nesse sentido, pode-se citar o poema “Taxidermia”, em que nos é apresentado o ofício desse taxidermista, vulgo “empalhador”, que, valendo-se de “lâmina de aço inexorável” (já conhecemos um pouco desse instrumento), retira o que há de carne no corpo e o vai “enchendo com palavras”, recebendo tal material – as palavras – a seguinte descrição: “palha vã / que nos mantém”. A precariedade do material deteriorado sonoramente de “palavras” a “palha vã” convive com a necessidade que se tem dele, mantimento básico. Ainda que a imagem tenha lá a sua morbidez, a antologia de Marcelo Sandmann atesta a vivacidade de uma poesia que há trinta anos, a tiros precisos, mantém palavras e mortos (vide “O poeta sai de cena” e “Escrevo para os mortos”) na ativa.
O limite de caracteres desta resenha já vai chegando. A resenha pôde ruminar o asterisco de abertura por dois longos parágrafos e depois arranhar a leitura de uns poucos poemas que compõem a antologia. A falta decorre das habilidades do poeta que, leitor de Ezra Pound, abarrota o mínimo dos significantes com significados de matéria mais densa que o chumbo, demorada, de digestão lenta. É verdade que engolimos rápido como o tiro na testa do poema “Poesia versus prosa” – “pá-buf!” – mas a digestão (ou convalescença, talvez ressaca) acaba exigindo um pouco mais, talvez algo como aqueles famosos quatro estômagos no cérebro do leitor ruminante somados à disposição para comer pedras. Aos que precisarem de algum descanso, poderão servir-se do “Pato ao tucupi”, interlúdio herói-cômico que divide a antologia, sendo poema em que o poeta mostra face robusta também quando propõe poesia mais discursiva. Bon appétit!
Poemas de Marcelo Sandmann
TAXIDERMIA
Com lâmina de aço inexorável,
ele fere firme a epiderme,
esgarça os nervos,
retalha os músculos,
revira as vísceras
e risca, nos ossos,
suas iniciais.
Taxidermista habilidoso,
extrai do corpo
o que nele há de carne.
E esse invólucro difuso,
a que muitos chamam “alma”,
vai enchendo com palavras,
palha vã
que nos mantém.
SOL POR DENTRO
Há um sol
que brilha por dentro.
(Pelos ossos, pelo
sangue, pelos músculos,
pelos nervos.)
Ele arde na carne,
ferve na pele,
reverbera em pensamento.
Há um sol
no fundo do corpo,
lúcido, noite adentro.
O POETA SAI DE CENA
O poeta sai de cena,
deixa versos
e o cadáver.
(Como fugir ao culto dos mortos?)
As palavras são difíceis
mas a carne cede fácil.
Que ternura! Que metáforas!
É morto fresco.
Mas se o sabor sabe a bolor,
ou já mesmo a podridão,
é que estes tempos são tempos
de rápida corrupção.
Pois fiquem à vontade, sirvam-se.
Experimentem seu foie gras,
quitute cevado há anos
com tintos de fina cepa.
(Todo leitor tem um quê de necrófilo.)
Por gentileza, sirvam-se.
Não façam cerimônia.
Vida longa à poesia!
Et bon appétit!
*Resenha publicada originalmente na Suplemento Literário de MG ed. 1379:
http://www.bibliotecapublica.mg.gov.br/index.php/pt-br/suplemento-litelario/edicoes-suplemento-literarios/2018/125–103/file?fbclid=IwAR1R4rSYhEWMH3-Xfa8JdDL8Hj4rVvTs-5hUuYMmxpuvJWNXDjL07yy1P84
*Gabriel Rachwal é professor de literatura da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
*Marcelo Sandmann paranaense de Curitiba, é poeta e compositor. Publicou diversos livros de poesia e contemplou 30 anos de literatura numa Antologia Poética recém-lançada.