Morte e ressurreição de Karl Marx – Roberto Ponciano

O marxismo é uma superestrutura viva, um método de análise da realidade que utiliza a práxis, a concretude do mundo, para analisar a realidade. Todo dia alguém mata o marxismo, todo dia Marx renasce. Do gesto sádico triunfalista de um Fukuyama, dizendo que “a história acabou”, às certezas pós-modernas da morte do humanismo e das grandes narrativas, o marxismo tem adversários ferozes, à esquerda e à direita.

Toda superestrutura de pensamento, diz a dialética marxista, está datada e morrerá. Tudo que existe perece, tudo que é sólido desmancha no ar. Com o marxismo, com o materialismo dialético não será diferente. Não é uma teoria hipostasiada e reificada que merece sobreviver como fé de seus militantes, como uma espécie de rito ateu das Testemunhas de Marx do sétimo dia. Mas, como diria Paulinho da Viola, tá legal, eu aceito o argumento, mas não me altere a práxis tanto assim, olha que a camaradagem já está sentida a falta, da luta de classes e da emancipação da humanidade.

O marxismo anuncia sua própria morte vindoura, mas não sem que antes morra o objeto de sua análise e crítica, o capitalismo. O marxismo é ainda jovem, pulsa e viceja, porque não foi superado ou substituído por nenhum método outro de análise que dê conta da totalidade, da integralidade da realidade. Os que alardeiam o fim das grandes narrativas são irmãos siameses pós-modernos de esquerdas daqueles teóricos de ultradireita que alardeiam o fim da história.

É o único método de análise que o proletariado tem para se opor de forma antagônica ao capitalismo, inclusive as suas teorias fetichizadas e sofisticadas de fim das grandes narrativas e fim da história. No fundo, pós-modernos e direitosos dão as mãos e dançam numa grande noite de Valpúrgis, em que vendem suas almas ao diabo em nome da notoriedade e da imortalidade de suas famas. O fato é que nem o diabo existe e nem a imortalidade, somos seres efêmeros, e o marxismo sempre trocou a sofisticação da notoriedade acadêmica pela tarefa de emancipação da humanidade a todas as formas de opressão.

O discurso de Foucault, de uma antropologia do saber, no qual a verdade se restringe ao aparelho coercitivo que domina as formas de dizer a verdade é manco, circular e tautológico, porque despreza a práxis e a realidade. Foucault escutou o galo cantar, mas não sabe bem onde foi. A ideia gramsciana dos sujeitos coletivos e seu desenvolvimento em Althusser, como Aparelhos Ideológicos de Estado e Aparelhos Repressivos de Estado nos faz obrigatoriamente pensar nas estruturas da superestrutura que monopolizam a verdade. O marxismo não é estranho a isto, Adorno e Horckheimer debruçaram-se no estudo da indústria cultural e da reprodução da cultura reificada e seus efeitos na socialização do homem, secundados por Guy Debord e a análise da Sociedade do Espetáculo e da espetacularização do mundo, com perda de limites entre o mundo real e a cultura fetichizada da Indústria cultural.

A dominação sofisticada do fetichismo da mercadoria como segunda natureza, a cultura reificada, objetificada, transformada em processo de produção de consciência, de comportamento em série e em massa, produzindo a domesticação da classe operária e do proletariado, é um epifenômeno a ser estudado, a partir da utilização do rádio, do cinema (objetos de estudo de Adorno) e intensificados a partir da televisão, com voracidade ainda maior sobre as ondas da internet, sobre a qual Umberto Eco previa a ditadura da imbecilidade.

Assim, vemos pelas citações acima que, contrário ao senso do que se diz hegemonicamente nas academias, o marxismo não parou no tempo e no espaço, desde sempre, na heterodoxia de autores marxistas e marxianos (Adorno, Horckheimer, Althusser, Lukács, Walter Benjamin, Guy Debord, Mészàros, e até Sartre[1]), ele se deu conta dos novos problemas das estruturas sofisticadas do imperialismo e propôs que inventássemos novas soluções para novos problemas. Como próprio Marx alertava, a humanidade não se coloca problemas para as quais as soluções não estejam dadas, mesmo que ainda como tese a ser elaborada e testada na práxis.

A academia brasileira é hegemonicamente pós-moderna e antimarxista. O problema é que 95% destes pós-modernos nunca se deram ao trabalho de estudar Marx, ou se debruçaram no salto que existe entre a dialética hegeliana diante da coisa em si incognoscível kantiana, ou do ceticismo diante de qualquer racionalismo estrutural de Nietzsche.

Retroagem na crítica à Marx a posições pré-hegelianas, e pretendem defender um irracionalismo ateu, escondendo o quanto o nomos husserliano era uma tentativa de novamente dissolver a racionalidade numa sofisticada mistificação e mitificação psicológica, em que a navalha de Ockham da prova é afastada, por uma pseudocomplexidade do pensamento, no qual o ente não necessitaria mais da materialidade.

Diante da questão ontológica estrutural, da pergunta, o que veio primeiro, o ser ou a essência, eles respondem, num truque de prestidigitador: “o ser essente”. Assim, pretendem salvar o irracional e o irracionalismo e combater todo e qualquer tipo de influência da racionalidade da prova na ciência, no que não só se colocam como anteriores a Hegel, tornam-se antediluvianos, anteriores inclusive a Darwin. Para salvar as aparências de cientificidade de seu pensamento gritam em uníssono “neo postivismo”, toda vez que alguém argumentar a favor da prova, da materialidade e da racionalidade.

O marxismo é válido não por uma questão de fé. Estamos bastante distantes das desventuras da dialética de quem escreve histórias pós-scriptum e sempre tentam racionalizar e ajeitar o marxismo para uma espécie de triunfalismo, capaz de apagar todos os erros de perspectiva e aporias no pensamento marxista e transformam a dialética em fé, de culto ateu. Determinada dita “ortodoxia” vigente na Terceira Internacional, que descambou para o mito do socialismo como necessidade histórica, perverteu-se para formas ateias religiosas reificadas, em que a história existe como na narrativa de um deus ex machina, que ajusta tudo para a vitória final do marxismo.

Então trava-se uma luta de fio dental no barro. De um lado, pós-modernos munidos da certeza de que a irracionalidade, a análise microscópica ahistórica é uma nova religião, se batem contra “marxistas” que abriram mão da dialética. É um espetáculo feio, sangrento, sem graça e que não vai dar em lugar nenhum.

A dialética é aberta, assim como o campo da história. O materialismo dialético, o marxismo está vivo, lateja, porque não tergiversa sobre a ontologia da Filosofia e da Ciência. Quando perguntado sobre o que precede, diz de maneira clara e direta, o ser precede a essência. Antes da ciência, antes do espírito, antes de todas as abstrações, é necessário a existência concreta, a história. Toda a complexa sofisticação do pensamento é derivada da história real do universo e da humanidade. A práxis coletiva. A racionalidade não é uma forma reificada de reinvenção do mundo, mas crítica dialética real do mundo que existe fora e independente de nós.

Estes pressupostos ontológicos e históricos e que tornam o marxismo tão rico e insuperável no nosso tempo. Todas as críticas pós-modernas do marxismo, Nietzsche, Heidegger, Bergson, Husserl, Žižek, Kristeva, todas, absolutamente todas, advogam alguma forma de irracionalidade. Começam a crítica ao marxismo o acusando de ser uma continuidade “ingênua” do iluminismo e ter o erro epistemológico de acreditar na racionalidade. Ingênua é a leitura que eles fazem de Marx, o método dialético nunca foi ingênuo, nunca acreditou numa natureza ou bondade humanas[2], Marx não parte do Rousseau ou do bom selvagem, parte da história concreta e real, com toda a sua maldade, na historicidade da humanidade Marx nega qualquer pré-essência de “natureza humana”. Aliás, na dialética há toda uma apologia sobre a importância do mal, do negativo, do destrutivo na estrada para formais mais evoluídas de estruturas sociais.

Alguns destes críticos mal leram ou leram mal Marx mesmo, criticaram o Marx imaginário, não o real. Outros simplesmente tinham intenções ideológicas bem concretas: em Foucault há uma série de estudos bem interessantes da sociedade, mas sempre a intenção ideológica indisfarçada em derrotar a práxis e postergar para o nunca a ideia e a possibilidade da revolução.

Se a ideia da revolução e do socialismo como necessidade histórica deve ser vista como uma forma de religião ateia, de reminiscência deísta da dialética hegeliana, de história pós-scriptum, tão condenada por Marx em seus trabalhos; a conclusão, não necessária, oposta de história fechada, de fim da história, da morte das grandes narrativas, de impossibilidade da revolução, é tão caduca, ahistórica, anticientífica quanto a fé num messianismo socialista. É a ideia de um DNA capitalista da terra e da humanidade e que teríamos chegado a uma forma “perfeita de sociedade”. É apenas fé em formas ahistóricas e preconceito disfarçados de “modernidade”.

Para que leu Marx com atenção, a história é um campo aberto de possibilidades, a revolução é uma destas, e não só uma destas, é a mais bela de todas!

Marx e o marxismo estão vivos!

Viva Marx!

Proletários de todos os países uni-vos, nada tem a perder, senão suas cadeias!

Tem um mundo a ganhar.

Roberto Ponciano é escritor, filósofo, militante político, socialista e marxista. Doutorando em Literatura Comparada, Mestre em Letras Neolatinas e Filosofia.

[1]    Ainda que não seja marxista, Sartre dedicou boa parte do seu trabalho intelectual maduro à defesa da atualidade do marxismo e da utilidade da práxis como única filosofia viva capaz de se contrapor ao imperialismo

[2]    Em “O futuro de uma ilusão”, Freud faz uma potente crítica aos fascistas, mas pretende também atacar o comunismo partindo da ideia de que Marx acreditaria numa natureza boa do homem, como Rousseau fazia. A crítica é bem interessante, mas parte de uma base falsa, porque Marx nunca construiu ou acreditou em qualquer natureza humana.

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