A polifonia não é novidade nos romances de António Lobo Antunes que, através de painéis narrativos intrincados, se desenvolve nos segmentos da prosa poética e de fluxos de consciência extremamente precisos. O estilo não-linear de Lobo Antunes passou a se evidenciar a partir de romances como As Naus (1988), Tratado das paixões da alma (1990), A ordem natural das coisas (1992), O manual dos inquisidores (1996) e O esplendor de Portugal (1997), entre outros.
Com o passar do tempo a desconstrução da forma romanesca tradicional e a ruptura de elementos sintáticos em suas narrativas se tornaram mais evidentes, como a ausência de diálogos estanques em um plano temporal objetivo que dá lugar a devaneios, delírios e lembranças. As narrativas mais recentes de Lobo Antunes são compostas por solilóquios e monólogos irredutíveis sob perspectivas variáveis de personagens repletos por neuroses e obsessões.
As experiências na guerra colonial em Angola serviram como pano de fundo para vários romances do escritor português, evidenciando um tom autobiográfico, mas em toda sua trajetória ele nunca foi tão direto e desprovido de amarras como no livro Sôbolos rios que vão (2010). Lobo Antunes teve câncer pouco antes de lançar esse romance e, depois de lidar (mais uma vez) com a experiência da morte iminente, fez uma espécie de balanço de sua vida. Na breve narrativa (coisa rara na extensa bibliografia de Lobo Antunes), lembranças se misturam com delírios e acontecimentos nebulosos envoltos em uma atmosfera onírica e soturna.
A ação de Sôbolos rios que vão é bastante fragmentada, como é recorrente em vários livros anteriores, mas nessa breve, mas densa, narrativa, os estilhaços polifônicos assumem proporções maiores que em outras obras; há, assim, vozes distintas de um mesmo narrador, como a voz do protagonista ainda na infância em sua aldeia natal e a voz do protagonista delirando em um leito num hospital em Lisboa. A doença submete o indivíduo à mais humilhante derrota, que é tornar-se vítima ou prisioneiro do próprio corpo. Os embates metafísicos são intensos durante toda narrativa.
Vale ressaltar que o brainstorm que de certa forma aprisiona e liberta o narrador, que é o próprio António Lobo Antunes, se mistura frequentemente ao plano do delírio. A voz do avô é recorrente durante todo o romance, como um eco do fundo das eras que se repete durante várias passagens da vida de António. A voz do avô une-se à sua e vários labirintos estilísticos e narrativos começam e acabam no mesmo parágrafo, tendo, assim, o melhor exemplo do que vemos em Bakhtin, do heterodiscurso. Em momento algum o narrador se assume como ele próprio, ou seja, não assume ser ele mesmo porque não há referência ao fazer literário ou a qualquer indício de que um texto de fato esteja sendo escrito. Mas há a autocitação, ou seja, António Lobo Antunes além de autor-modelo é personagem, mas não vem a ser autor-empírico (ver Umberto Eco, Seis passeios pelos bosques da ficção).
António Lobo Antunes deixa bastante claro durante todo o romance uma das máximas do existencialismo, que é tentar explicar a inverossimilhança da vida diante do absurdo da morte. A morte não pode ter mais sentido do que a vida. Isso acontece quando a memória, que é o único e último recurso do protagonista, começa a falhar. Essa falha simbólica é o primeiro indício claro da finitude e da fragilidade humana.
…e a ausência de memória a apequená-la de angústia, a sua voz de súbito numa energia que a espantou… (p. 184)
Ao passo em que a narrativa (ou as narrativas) vai chegando ao fim, Lobo Antunes evidencia ainda mais uma espécie de tragédia iminente, como um momento nevrálgico inevitável. Nota-se que há a preparação de um acerto de contas com a vida. Há um tom de prenúncio de tragédia que permeia seus últimos dias no hospital.
– Ninguém quer saber de nós
dias a fio sozinho tal como eu nesta cama com a mesma fúria de partir e incapaz de partir, partem as visitas pela gente, se tivesse um filho podia ser que, não, se tivesse um filho ia-se embora com os outros, o que vale este pai e talvez fosse o que meu pai queria dizer fitando o balanceio dos líquenes ou o avô a atravessar o jornal na varanda não se importando com as notícias, a minha avó
– Foi sempre distraído
e não era distracção, era a falta de coerência da vida…
(p. 168)
António Lobo Antunes leva muito a sério o fato de não contar uma história. Ele tenta reproduzir na escrita a angústia de seres, em sua maioria, decadentes. Decadentes se não moralmente, fisicamente. O que é relatado acaba por ficar em um segundo plano, evidenciando-se mais como relatar, como contar, como inventar. Esses artifícios experimentados por Lobo Antunes são compostos em uma prosa poética labiríntica, ou seja, as angústias e devaneios dos personagens sofrem uma espécie de emparedamento metafísico. No caso do protagonista, além do emparedamento metafísico, há também um emparedamento físico, pois está preso à cama de um hospital. A forma romanesca de Lobo Antunes é um labirinto que deve ser penetrado pelo leitor com argúcia, com cuidado, mas com audácia. Sôbolos rios que vão é um belo exemplo da densidade e do experimentalismo praticados por Lobo Antunes como se fosse uma síntese de toda sua obra.
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Daniel Osiecki nasceu em Curitiba (PR), em 1983. Publicou os livros Atmosfera das grutas (2023), Veste-me em teu labirinto (2021), 27 episódios diante do espelho (2021), Fora de ordem (2021), Trilogia amarga (2019), Morre como em um vórtice de sombra (2019), fellis (2018), Sob o signo da noite (2016) e Abismo (2009).