por Benedito Costa
Eu gostava de admirar o punho de Assionara, ver os contornos. Era um punho anguloso, mas delicado, com ossinhos saltados. Creio que a maioria de quem conviveu com ela deve ter reparado isso. Tudo nela, aliás, era ângulos e delicadeza, como o perfil grego de uma estátua repousada em sua placidez divina. O nariz um pouco reto e os olhos puros. Assionara tinha um quê de estatuária clássica, como se um escultor do século VI a. C. tivesse visitado o Egito e lá se deparado com obras de um povo já extinto, numa terra ocupada por outras pessoas, pessoas que viviam a presença de outras pessoas que, por sua vez, já tinham vivido isso — e de lá trazido inspiração. Assionara era uma presença do passado, muitas almas numa só, muitas vozes. Plácida, boa e clássica.
As várias vozes dela, esse mistério. Havia nela povos e línguas, gentes, autores, uma riqueza do uso da palavra que poucas vezes eu vi e ouvi. E esse pulso/punho me atraía porque era dali que saíam coisas. Era bom vê-la mover esse punho firme e delicado ao mesmo tempo. Eu ficava pensando nela escrevendo à mão ou a digitar. Era o punho (no sentido mesmo de força) de um escritor. Ao pensar nisso, lembro de nossas poucas conversas, mas conversas profundas, em que a palavra tomava posse. A palavra “punho” remetia a outras, como “muñeca”, para daí chegar a “boneca”, para então mergulhar nas possibilidades da escrita, do sentido, da forma. São poucas as pessoas que gostam de falar das palavras. Discutimos tanto o sentido das coisas, os discursos, as teses dos autores-filósofos todos que lemos, mas às vezes esquecemos da beleza das palavras simples: mão, cabelo, horizonte, janela, cotovelo. Digo isso porque Assionara tinha uma capacidade incrível para falar das coisas simples, para tirar delas mistérios já perdidos, ainda não encontrados ou pouco observáveis no dia a dia.
Tanto a prosa quanto a poesia (e há textos que transitam entre um formato e outro) tinham essa capacidade, a de observação precisa. Eu disse em outro lugar que o texto dela era o gesto de levantar uma pedra para mostrar o universo que se formou sob o peso morto. Era para observar a pedra, a princípio, mas não sem apontar, descrever e nomear aquele microrreino que se forma sob as coisas frias. Assionara gostava de transitar pelos reinos pouco visitáveis, o escuro, o subaquático, a sombra. Era como se precisasse fazer esse passeio para de lá falar da luz, do sol e de uma palmeira iluminada perdida numa ilhota em Tuvalu. Mesmo nos momentos mais delicados de sua vida ela não deixou de ser generosa com as coisas e as pessoas, de ser aguda também.
Era bom trocar com ela ideias sobre a distância: uma tradução de Kaváfis, Paladas ou Ovídio. Mas ela era também generosa com os jovens. Procurava suas obras e as lia com misto de curiosidade e respeito.
A literatura brasileira perde uma grande escritora. Então, é uma alegria imensa saber que deixou inéditos, logo logo à disposição para os leitores que a conheciam e para aqueles que não não tiveram esse prazer.
Respostas de 2
Troquei inúmeras mensagens com a bela Assionara, a de punhos angulosos, mas poucas conversas pessoais, entre elas a mais profunda que jamais tive e provavelmente terei. Parabéns pelo texto, pela homenagem, sensível Benedito. Assionara vive.
A poesia encanta…