Se morrer, não vou visitá-la

por Bruno Nogueira

Preso em casa, os meses duram anos. Me faz companhia Sorvete, o gato baunilha que me adotou há poucos meses e com quem, cada vez mais, converso. É meu analista e companheiro em tempos de quarentena. Pergunto a ele como está minha mãe, e finjo que me responde otimismos.

Sorvete é vadio, acostumado a vagar livre pelos telhados. No entanto, conforme o isolamento social se impôs, cortou-se meu pálido contato com uns poucos amigos nessa cidade que mal conheço — e meu medo aumentou. Passei a temer que ele não voltasse, que os cães que antes ganhavam seu sustento pedindo restos em restaurantes e bares voltassem a ele suas presas esfomeadas, que outra pessoa, também presa, lhe parecesse mais interessante, lhe oferecesse melhor comida, e ele me abandonasse — não guardo ilusão quanto à fidelidade dos gatos. A casa não tem grades e não há quem as instale; para mantê-lo aqui, sou obrigado a fechar as janelas. Quando preciso respirar ou renovar a casa, me fecho sem Sorvete em algum cômodo e as abro de canto a canto, puxando com força o ar que agora é bem mais puro.

Mas fique sabendo, Sorvete, que não faço por mal. Comprei-lhe até jaulinha de viagem, pra que pudesse ir comigo ao interior, onde conheceria minha mãe e seria mimado e bem alimentado além de seus mais selvagens sonhos. Ela lhe cataria no colo contra sua vontade, num aperto do qual não poderia se desvencilhar ainda que teimasse e se torcesse, como é seu costume. Lhe daria quitutes de salmão, talvez até pedaços de salmão mesmo, pra lhe agradar. Mas as rodoviárias e aeroportos estão fechados, Sorvete, e não podemos sair. As mortes chegam aos milhares, e ontem me chegou notícia de que a mãe está na UTI, de que uma máquina respira por seu agonizante pulmão de oitenta anos. Ainda que estivesse lá não poderia visitá-la. Se ela morrer, não haverá enterro, não poderei estar sequer ao pé de seu caixão até que mais de mês se tenha passado.

E é por isso, Sorvete, que lhe peço paciência. Pare de se pendurar nas cortinas em suas desastradas tentativas de fugir por janelas fechadas. Silencie seus miados melancólicos enquanto encara insistente a porta que não abrirei. O libertarei novamente quando eu mesmo puder sair sem que outras mães corram riscos por mim. Quando puder passar sem você. Por hora, por favor, se aquiete, venha até aqui, coma a ração que lhe comprei, que não é a melhor mas não é ruim, e me entenda, e por só mais um pouco faça as vezes de meu analista, por só mais um pouco seja o amigo que preciso que seja.

*Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba, Mestre em Estudos Literários.

*foto Evgeni Tcherkasski

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