Os ipês estão de volta! – Denise Mazocco (Umas cuias com a memória)

Um dos sons de que eu mais gosto de ouvir é o da minha esposa escrevendo. É uma sequência sonora em movimento. O teclado responde em tons à velocidade dos dedos, que se alternam entre textos, pontos e pausas. As ideias surgem e são pensadas e repensadas no silêncio, nos andares pela casa, nas leituras… O texto se forma, então, por completo, daí é conduzido ao papel, ou ao arquivo. O dedilhar constante vai formando um parágrafo. Ponto. Outro parágrafo, ponto. Mais um. Ponto. Das descobertas, ouço o som forte e rápido; das personagens, sons que lhes são falas; das perguntas, a oscilação de graves e agudos; dos enredos, a emoção, o riso, o conflito, o clímax, o desfecho, entoados. Ouvindo, apenas, imagino e tento adivinhar o texto. Ao deixar o teclado, confirmo se acertei a adivinha na expressão de seu rosto.

Existe uma memória do escrever, que também é sonora. Ela se constrói em prolongada pesquisa e dedicação ao elaborar um texto. Ouvinte da minha escritora, percebo também cada pausa. A pausa é concedida a alguma consulta (pausa rápida), a tarefas cotidianas e profissionais (pausa longa), ao sono e a nós (pausa-aconchego). Descubro também essa memória em livros: encontro sua letra nas margens, bilhetes nas folhas de rosto, anotações para preparo de aulas, destinatários ao redor de estrofes de poemas. A letra em memória se estende a planos do dia em listas de supermercado, de afazeres, de recados para casa, em calendários. Ao ler, encontro sua voz.

Fico imaginando os sons da escrita de cada autor e autora que li. O silêncio absoluto de Proust cortado pelas folhas riscadas, pesadas pelos acréscimos longos às margens após precisas revisões. Acho até que Proust tinha um som diferente para descrever cada personagem daquela sociedade francesa. O riso rabiscado no papel de Suassuna, com som de conversas em equívocos propositais. O som saltitante de cada letra nos poemas de Quintana. O fluxo de consciência à capela de Clarice seguido do silêncio do olhar encarado entre autora e personagem. Imagine, leitor e leitora, os sons da escrita de seus livros favoritos. É também um degustar da leitura. Ouço todos os sons de um Brasil de passagem do século XIX ao XX à caligrafia das mãos de Júlia Lopes de Almeida: arranham o papel, fazendas e patriarcas escravocratas; misturam-se vozes de rebuliços republicanos; vibram os romances que não se reduzem a obviedades. Em sons de escrita, escritores e escritoras construíram narrativas que nos cantam mundos. Os cânones que me deem licença, mas considero que na definição de clássico estão escritores e escritoras que, por mais que não estejam entre nós, ainda os ouvimos escrever.

Chaplin atentou para o som da escrita. Só com os tons do bater à máquina de escrever, o diretor fez uma das grandes sátiras do cinema: o longo discurso do Grande Ditador era datilografado na máquina em poucas sequências sonoras, o curto, em uma comprida sequência barulhenta. Tem dito e tem não-dito, não é mesmo?

Me incomoda, porém, quando som da escrita é interrompido. Não falo das pausas, gosto delas. Me refiro a interrupções mesmo. Outros sons que entrecortam o movimento dos textos. Sons contínuos de motores que preenchem as ruas nos ao-redores de nossas casas, por exemplo. O que mais me perturba é, sem dúvida, o de sopradores de folhas. Aquelas máquinas feitas para disparar jatos ininterruptos de ar cuja única função, única mesmo, é deslocar folhas caídas ou cortadas de um lugar para o lado imediato. Não sei quem foi o primeiro jardineiro ou jardineira a considerar imprescindível o uso dessa ferramenta, e nem qual foi a empresa que impôs essa violência sonora a um dos trabalhos mais delicados que é o cuidar de árvores e flores. E folhas, sempre elas! Só sei que quem faz uso disso, muitas vezes sem proteção auricular, deve sofrer com o barulho, se já nós, com as janelas fechadas, não aguentamos…

A pergunta que faço é: para que essa importunação? Por mais que alguns considerem que a estética dos condomínios é a retirada das folhas das calçadas, a natureza insiste em nos embelezar, lembrando-nos que fomos nós que a invadimos com nossos concretos. Onde eu moro, há dois manacás no jardim que, quando floridos, nos recebem com flores nos galhos e estendidas no nosso caminho até em casa. Um dia, por algum incômodo questionável da vizinhança, o zelador pôs-se a varrer as pétalas do chão. No dia seguinte, os manacás deram seu recado estendendo seu tapete de pétalas rosas e roxas novamente sobre a calçada. As árvores venceram a batalha! Barulhos como os dos sopradores de folhas interrompem e se sobrepõem a nossa memória sonora. Em sua ausência, ouço os passarinhos primaveris enquanto meus dedos estalam no teclado do computador, em sons cheios de idas e voltas, este texto. O que fazem os escritores e as escritoras senão cuidar de folhas que entopem nossos bueiros, voam nos parapeitos de nossas janelas, caem suavemente em nossos cabelos e estalam no chão ao pisarmos em nossos caminhos diversos?

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as ruas vizinhas e penso comigo… os sopradores de folhas que se segurem: os ipês estão de volta!

Denise Miotto Mazocco é graduada em Letras e História, professora de Língua Portuguesa, mestre e doutora em Linguística, e assina coleções de livros didáticos. Como escritora, publicou os infantis Primeiro Voo (Editora Insight) e Peças e Pensarias (Editora Inverso), e os contos de Por quem os ipês sofrem (compre aqui). Em breve, lançará seu primeiro romance: Da memória, da história e do.

Respostas de 3

  1. Que presente esse texto, muito lindo os silêncios e sons da escrita. Quando leio ouço o escritor (a) narrando mudando o tom de voz conforme personagens. Adorável texto, parabéns 👏🏼

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