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Análise do romance Extinção, de Thomas Bernhard, no qual o escritor austríaco constrói uma espécie de tratado contra a existência

João Lucas Dusi | Curitiba – PR

 

“Primeiro temi a vida, depois a odiei”, registra o personagem Franz-Joseph Murau no romance Extinção (1986), de Thomas Bernhard. Percebo agora que desde que comecei a ler a sério, por volta dos meus 16 anos, talvez eu estivesse buscando esse exercício retórico absolutamente repulsivo contra a existência. É um livro no qual se exerce a plena liberdade de odiar o próximo e a si mesmo – com escândalo, espumando pela boca.

Algo semelhante foi executado por Emil Cioran em Breviário de decomposição (1949), outro tratado histérico contra a vida. “Odiar tudo e odiar-se em uma fúria de raiva canibal; ter piedade de todo o mundo e apiedar-se de si mesmo: movimentos aparentemente contraditórios, mas originariamente idênticos: pois só se pode ter pena daquilo que se gostaria de fazer desaparecer, daquilo que não merece existir”, aconselha o filósofo romeno, o que jamais deixei de achar algo cômico.

Nas quase 500 páginas do livro de Bernhard, porém, essa “fúria de raiva canibal” se mostra para além de apenas um esboço: é efetivamente colocada em prática por meio de Murau, professor de origem austríaca, cuja vida – em Roma, onde mora – parece girar em torno de seu único aluno, Gambetti, que também serve de plateia para seus comentários coléricos. “Nenhum professor, tal como nenhum juiz, é digno de confiança, por capricho torpe e pura sede de vingar sua triste vida arruinada eles aniquilam diariamente, sem escrúpulos nem remorsos, muitas das existências que lhes são confiadas, e ainda por cima são pagos para tanto”, é o que o mestre tem a dizer sobre seu próprio ofício, exercendo uma autoconsciência que o espicaça durante toda a obra.

Além do jovem aprendiz, ele parece tolerar – se é que é essa a palavra – somente mais uma pessoa, a poeta Maria, considerada a salvadora da literatura alemã no século 20 e a quem ele recorre quando precisa mostrar um novo escrito – sempre rechaçado. É essa mesma leitora, aliás, que uma vez o definiu como “alguém que extingue” e fez com que essa sugestão martelasse sua cabeça por tempos. Para encerrar essa obsessão, Murau escreve o livro Extinção. Assim, ao ler o romance de Bernhard, lemos também o trabalho de seu personagem, em um exercício metaliterário que salta da página, materializa-se.

David Foster Wallace, autor de Graça infinita

Utraficção

Não é algo difícil de se fazer em termos técnicos, pois bastou a Bernhard registrar: Franz-Joseph Murau escreveu Extinção – e pronto, daí surge toda a “mágica”. Mas descontruir essa manobra gera reflexões interessantes: por mais que o “pacto ficcional” seja quebrado no momento em que o leitor é informado de que está lendo um trabalho de ficção, ou seja, não existe a intenção de o autor emular um mundo paralelo à realidade e fazer com que o leitor seja fisgado cegamente por ele, este pacto é, na verdade, elevado à última potência – o leitor está lidando com ficção e está ciente disso, sim, é Thomas Bernhard quem colocou seu personagem para escrever um livro que leva mesmo o nome do que ele, Bernhard, está escrevendo, mas, mesmo sabendo disso, tem-se em mãos de fato esse produto ficcional. É algo concreto, uma espécie de ultraficção implantada na realidade, capaz de modificá-la através de sua materialidade – Extinção é obra do romancista austríaco Thomas Bernhard, correto, mas também é do personagem Murau, e dessa coautoria forjada surge realmente um produto concreto, para além da imaginação: a ficção só é possível devido à materialidade real das páginas, mas a existência material das páginas é reivindicada pela ficção. Efeito semelhante de interferência factual no mundo por meio da ficção foi buscado por David Foster Wallace com as centenas de notas de rodapé do romance Graça infinita (1996) – ao adicioná-las histericamente, tornando-as parte essencial desse jogo ficcional de mais de mil páginas, o escritor norte-americano obriga o leitor a praticar uma ginástica literária: o livro se torna interativo. O ritmo de leitura é constantemente quebrado quando se é necessário trocar do texto principal para uma nota, sente-se constantemente a materialidade da obra, e esse aparente incômodo se torna, ele mesmo, parte crucial do processo (propositalmente penoso) de fruição – e absorção – do conteúdo.

Esse recurso “ultraficcional” observado em Bernhard também foi utilizado pelo húngaro Imre Kertész em Liquidação (2003) – que, aliás, radicaliza ainda mais essa experiência ao adicionar várias camadas metaficcionais, criando um verdadeiro labirinto imaginativo que é ora quebrado pela informação de que Liquidação se trata tanto do produto que temos em mãos quanto da obra de um personagem, exatamente como no caso do trabalho de Bernhard. Há outros exemplos de livros que se afirmam como trabalhos ficcionais, que não buscam “enfeitiçar” o leitor com a criação de um simulacro da realidade, apesar de também fazê-lo (desta vez, por meio da negação), como o Se um viajante numa noite de inverno (1979), de Italo Calvino. De qualquer forma, é Kertész – sobrevivente de Auschwitz – que me vem primeiro à mente por também carregar um ódio primal em suas palavras. Me marcou um poema escrito pelo personagem B., no qual ele propõe a continuação da vida como um ato de revolta, bem como o franco-argelino Albert Camus já tinha proposto, uma vez que o suicídio seria a coisa mais óbvia a se fazer.

É fácil morrer
a vida é um grande campo de concentração
que Deus arranjou para os homens na Terra
e que o homem para o homem
faz evoluir para um campo de extermínio
Ser suicida é
burlar a vigilância
desertar fugir dos que ficam
rir nas mãos em prece
Nessa grande prisão da vida
não sair não entrar caminhar não recuar
das vidas em suspenso
nesse mundo maléfico onde envelhecemos
sem que o tempo passe…
aqui aprendi que a revolta
É FICAR COM VIDA
A grande desobediência é
vivermos a vida
e ao mesmo tempo a grande humilhação
de que temos uma dívida com nós mesmos
O único instrumento apreciável
da vida é o suicídio
ser suicida é
como prosseguir a vida
recomeçar a vida a cada dia
reviver a cada dia
morrer de novo a cada dia

Imre Kertész, autor de Liquidação

Estranhamento hipnótico

Agora, o que mais me impressionou em Extinção é como ele repele o leitor, transborda estranhamento. Ao mesmo tempo, a repetição alucinada e o incômodo ritmo sincopado, convulsivo, com vários espasmos que buscam a destruição, geram um efeito hipnótico. Por mais desconfortável que seja a leitura, é difícil abandoná-la – toma-se gosto pela representação caótica. Gosto de imaginar quantos dias inteiros Bernhard gastou para chegar a esse calhamaço, para atingir um ritmo quase insuportável. A dedicação me parece quase demencial, exercida por alguém que encontrou na simbolização literária do mundo, em fazer com que a experiência de se estar vivo soe como um suplício inigualável, uma espécie de conforto. Tem gente, afinal, que só se sente à vontade em meio ao caos – imagem aparentemente contraditória que, me parece, explica um pouco da postura histérica, repulsiva e hipócrita de Franz-Joseph Murau, que se enxerga como um arauto da alta cultura, um sábio inatingível, e, na mesma proporção, parece prestes a se matar a qualquer segundo por não tolerar a si mesmo e muito menos a maioria de seus semelhantes.

Esse mesmo ritmo de escrita eu já conhecia d’O náufrago (1983), outro livro de Bernhard – que agora me soa quase um esboço, um estudo, do que viria a ser o Extinção. Em ambos não é permitido ao leitor mergulhar na obra, pois ele é repelido constantemente por esse trabalho de ourives macabro do autor, que deseja antes transformar a joia em um pedaço podre de latão – uma maneira de reproduzir a angústia da qual sofre o próprio personagem, talvez, uma angústia perpétua. “Com muita facilidade e muita rapidez nos habituamos a odiar, a condenar, sem perguntar se o nosso ódio e nossa condenação têm com o tempo a menor justificativa”, anota Murau, imerso em uma cólera cuja origem ele tenta demonstrar no decorrer do livro.

As investidas do personagem vão desde contra potes de compota até a igreja católica, responsável por destruir a vida das crianças com seus pressupostos inatingíveis, passando pela gente cristã e nacional-socialista do município de Wolsegg, onde nasceu, até chegar em toda sua família – o pai, um homem embrutecido que encontra conforto entre os caçadores e ao lidar com a papelada referente à enorme e rica propriedade familiar, onde abrigou generais nazistas após a Segunda Guerra Mundial; a mãe, uma “destruidora” afeita às futilidades da vida e que traiu seu pai por décadas com Spadolini, a quem Murau idolatra e repugna na mesma medida; o irmão Johannes, uma cópia do pai e filho preferido, o qual sempre teve vantagens na infância; e as irmãs Amalia e Caecilia, figuras que, de tão apagadas, merecem somente o desprezo de Murau, sendo a segunda casada com um homem a quem o narrador se refere exclusivamente como o “fabricante de rolhas para garrafa de vinho” e do qual Murau não consegue ficar perto por mais que alguns momentos sem se enojar.

O telegrama que Franz-Joseph recebe em Roma, avisando-o que pai, mãe e irmão morreram em um acidente de carro, não faz com que a situação se amenize. Pelo contrário, é justamente o que desencadeia todos os raciocínios do personagem e, em última instância, dá corpo à obra. Sua maior preocupação está no fato de que vai precisar retornar à Áustria, país que lhe causa nojo, para participar do funeral dos seus, sendo que há uma semana já tinha feito o sacrifício de ir ao casamento da irmã – do qual nada trouxe de bom, a não ser comentários maldosos compartilhados com Gambetti. E não é preciso que lhe avisem de todo esse comportamento histérico, pois ele reconhece bem a posição em que se encontra: “Se você pensa nos seus, sente engulhos, se pensa nos outros, sente os mesmos engulhos. Naturalmente quem pensa assim está doente, disse comigo, e no mesmo instante me dei conta do quanto era perigoso meu estado de ânimo”. Esse lampejo de autoconsciência positiva, em prol da vida, não impede que ele continue a odiar e odiar cada vez mais, em reflexões que puxam umas às outras e vão sempre em direção do abismo, jamais em busca de qualquer solução.

A impressão que Murau deseja causar é a de estar sozinho contra todos, e para isso seu esforço é hercúleo e autoconsciente: “Aprimorei a tal ponto minha arte do exagero que posso me definir sem rodeios o maior artista do exagero de que tenho notícia”. Havia apenas uma pessoa que parecia lhe agradar de verdade, o finado tio Georg, responsável por lhe direcionar no caminho da anarquia, por assim dizer, e ensiná-lo a maneira correta de se ler livros, apreciar quadros e, por fim, se posicionar no mundo como um todo – de maneira combativa, sem descanso e sem ter piedade de seus adversários, que são todos os que não se dedicam aos “produtos do espírito”, como ele define as artes, mas vivem estagnados por um tempo cada vez mais bestializado. “Meu único conselho às pessoas que pensam é suicidarem-se antes da virada do século”, diz o narrador a Gambetti.

É transbordando nojo que Murau comparece ao enterro de seus familiares e reencontra as pessoas que fizeram parte de sua infância. Ele parece demonstrar um pouco de apreço – se é que é essa a palavra – apenas pelos jardineiros, um pessoal pelo qual sempre teve consideração por se tratar de gente simples, nas palavras do próprio Murau, que o acolheu na infância, quando os demais pareciam odiá-lo, tratavam-no mal e acusavam-no de coisas que ele não fez. A narrativa, vale lembrar, como todo exercício em primeira pessoa, fornece somente o ponto de vista do próprio narrador, ou seja, meio que acredite no que quiser.

Esses traumas de infância perpassam todo o livro, e há uma passagem significativa, quando ele já está no funeral em Wolfsegg, para ilustrar como o personagem está não só preso à infância como, devido a esse cárcere mental, parece ter alcançado as portas da insanidade: “Havia trinta anos eu não mostrava minha língua a minha irmã Amalia, agora o fizera de novo pela primeira vez, e isso me divertiu. […] Ensaboei meu rosto com o pincel e me olhei no espelho com feições de palhaço, que logo mostrou a língua para si mesmo e que se divertiu tanto de mostrar a língua que repetiu esse gesto várias vezes, por assim dizer para sua própria diversão”. Aqui, o personagem expõe a autoimagem que criou de si mesmo, e ela é assustadora.

Outro ponto significativo é quando ele, por várias vezes, tenta abrir a tampa do caixão da mãe, que está lacrado devido às mutilações que ela sofreu no acidente de carro. A curiosidade do personagem é mórbida, deseja ver como está aquela figura que – literalmente – perdeu a cabeça. Acho possível encarar de duas formas: o desejo resvala na crueldade, no que Murau quer triunfar ao ver sua genitora naquele estado e purgar, por fim, todo o mal que ela lhe causou, ou existe a vontade de ver sua mãe pela última vez, isto é, a figura que lhe deu à luz e o criou – para além de todos os impasses e traumas. Tendo a acreditar mais na primeira opção.

O filósofo romeno Emil Cioran, autor de Breviário de decomposição

Príncipe da Áustria

Toda construção do personagem me faz pensar no caso de Hamlet: agir deliberadamente como um louco é, por si só, uma forma de loucura. As imagens criadas para si próprio, inicialmente de caráter artificial, adquirem um peso definitivo quando cultivadas ao longo da vida. Se Franz-Joseph começou destilando ódio contra Deus e o mundo por mera influência de seu tio Georg e porque se sentia injustiçado na infância, com o passar dos anos esse sentimento realmente se apossou de seu imaginário com violência, forneceu-lhe uma identidade no mundo – sua posição é a de quem odeia, e sua existência só tem significado através da crítica e da repulsa. Como o próprio explica: “Usamos a soberba como escudo para poder nos afirmar, essa é a verdade, sou soberbo para sobreviver, eis uma frase coerente. Logo não sabemos mais, claro, se nossa soberba é simulada ou efetiva, mas não é necessário nos fazer constantemente essa pergunta, isso nos deixaria malucos e por fim dementes”. Reconhecendo essa condição, é na chave do ódio quase gratuito que ele segue em frente, em uma posição tão animalesca como a de seus iguais, criticados por serem máquinas que não se importam com os “produtos do espírito”.

De maneira inversamente proporcional, me parece que Murau cai na mesma laia daqueles que ele condena. É apenas mais um personagem dentro de um mundo artificial, como ele mesmo reconhece, que se sente superior por ter condecorado a si mesmo como juiz do que seriam bons costumes – claro, sem em nenhum momento deixar de lembrar o quanto ele mesmo é ridículo e dado a extremos. É essa a parte mais triste, penso, o reinado de Franz-Joseph acontece somente em sua mente, e a partir do que ele compartilha com Gambetti, a quem sempre tenta impressionar e acaba se envergonhando. Me parece um homem triste, muito triste, plenamente ciente tanto da própria miséria quanto da miséria do mundo, sem nenhuma vontade de modificar a situação que lhe causa tanto desconforto – o fato de existir. O que deseja é se extinguir através das palavras, carregando junto de si mesmo os seus semelhantes e tudo que lhe é significativo. “Os escritores como um todo”, afinal, “são a gente mais repulsiva que existe”.

 

João Lucas Dusi é autor do romance O diabo na rua (2022) e dos contos de O grito da borboleta (2019). Vive em Curitiba (PR).

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