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Na coluna anterior, discorri brevemente sobre o conto “A Igreja do Diabo”, de Machado de Assis. Hoje ainda tomada por essa atmosfera machadiana, relembro “Entre santos”, também publicado na Gazeta de notícias, em 1886. Dessa vez, pretendo fazer uma abordagem diferente da que foi feita anteriormente. Aqui, farei uma análise do conto dando ênfase à questão da literatura carnavalizada (Bakhtin, 1997). A teoria da carnavalização é um meio de estudar os textos literários e a cultura de um povo, enfatizando os efeitos cômicos e paródicos que revelam certas características do inconsciente social.

Por que a denominação Literatura carnavalizada? No carnaval, é operada uma inversão do mundo oficial num clima de grande vitalidade e de transformação. No carnaval, todos e todas se juntam e, durante esse período, prevalece um clima de igualdade entre as pessoas, mesmo aquelas de classes sociais diferentes. Portanto, a ordem estabelecida é subvertida, ocorre uma dessacralização, como afirma Bakhtin.

O conto “Entre santos” (1886/1996), de Machado de Assis, é uma história vivida por um padre já idoso que se surpreende ao presenciar santos sentados em seus altares, conversando abertamente sobre as promessas e a vida particular de seus devotos e suas devotas. “Quando eu era capelão de S. Francisco de Paula […] aconteceu-me uma aventura extraordinária”. Esta narrativa, a nosso ver, é um exemplo de sátira menipeia, gênero que integra o campo sério-cômico e que é denominado por Bakhtin literatura carnavalizada.

A sátira menipeia deve seu nome a Menipo de Gádara (séc. II d.C), filósofo cínico, que quis rebaixar os deuses da mitologia, da epopeia e da tragédia. Colocou todos em pé de igualdade, destronando aqueles que tinham valor elevado, ou seja, tirando do panteão indivíduos que eram importantes. Luciano de Samosáta transformou-o em personagem em seu livro Diálogo dos mortos (165-175/1996), em que Menipo aparece como aquele que tem o poder de rir de todos. No Diálogo, todas as eminentes figuras do mundo grego são rebaixadas. Após a morte, toda a glória, todo o poder que possuíam em vida, cai por terra (BAKHTIN, 1997).

ÉACO – Esse aí é o Agamenon; aquele é Aquiles, e perto dele é o Idomeneu; o seguinte é o Odisseu, depois o Ájax e o Diomedes e os melhores dos gregos.

MENIPO – Caramba! Ei, Homero, que sumidades das tuas rapsódias estão jogadas por terra, irreconhecíveis e disformes! Tudo é poeira e muita conversa mole e cabeças inertes! (SAMOSATA, 1999)

No conto “Entre santos”, temos o rebaixamento da figura dos santos, que são consideradas personalidades importantes pela Igreja Católica e que, na narrativa, “descem” à condição de seres humanos, com todos os seus defeitos e suas virtudes.

Como o capelão residia próximo à igreja, antes de dormir, verificava se havia apagado todas as luzes. Numa dessas noites, reparou uma luz acesa dentro da igreja e foi conferir. “Achei-as [as portas da igreja] bem fechadas, mas lobriguei luz por baixo delas. […]A luz, sem ser muito intensa, era-o demais para ladrões; além disso, notei que era fixa e igual, não andava de um lado para outro, como seria a das velas ou lanternas […]” . Ao entrar sozinho no templo, deparou-se com uma cena insólita: alguns santos, cuja aparência era a de homens adultos, desceram de seus nichos e conversavam tranquilamente como se seres humanos fossem. “Como naquele tempo os cadáveres eram sepultados nas igrejas, imaginei que a conversação podia ser de defuntos”. Entretanto, o narrador se surpreendeu: “A realidade ia dar-me coisa mais assombrosa que um diálogo de mortos. Encomendei-me a Deus, benzi-me outra vez e fui andando, sorrateiramente, encostadinho à parede, até entrar”. O narrador se aproxima para espiá-los, porém continuam a conversar sem se sentirem intimidados. O capelão estava muito amedrontado, porém a cena que se mostrava diante de seus olhos era inacreditável e, por isso, decidiu permanecer no local para ouvir o diálogo entre aqueles homens que, na verdade, eram os santos de sua igreja. Para sua surpresa, constata que os santos estão tecendo comentários sobre os pedidos realizados por seus devotos e suas devotas. “Dois ou três santos do outro lado, S. José e S. Miguel (à direita de quem entra na igreja pela porta da frente), tinham descido dos nichos e estavam sentados nos seus altares. As dimensões não eram as das próprias imagens, mas de homens”. Completamente aterrorizado, “arrepiado e trêmulo”, certo de que andava “beirando o abismo da loucura”, viu do lado oposto da igreja a mesma coisa: “S, Francisco de Sales e S. João, descidos dos nichos, sentados nos altares e falando com os outros santos”.  As vozes não subiam do tom médio e, contudo, ouviam-se bem, como se as ondas sonoras tivessem recebido um poder maior de transmissão”. À semelhança dos seres humanos, os santos, de acordo com a índole de cada um, “comentavam as orações e implorações daquele dia”. O narrador atento observava que os santos eram “terríveis psicólogos, tinham penetrado a alma e a vida dos fiéis, e desfibravam os sentimentos de cada um, como os anatomistas escalpelam um cadáver”. S. João Batista e S. Francisco de Paula, “duros ascetas”, por vezes, mostravam-se aborrecidos e arbitrários; já S. Francisco de Sales revelava-se mais indulgente. No colóquio entre os santos havia uma clara disputa no que diz respeito à originalidade do pecado cometido.  Dessa forma, cada santo referia-se ao seu devoto como o caso que despertava maior fascínio.

Os dois santos ascetas se sentiam muito entediados, porém S. Francisco de Sales falava-lhes das Escrituras: “muitos são os chamados e poucos os escolhidos”. S. João Batista retrucou: “digo-te que vou criando um sentimento singular em santo: começo a descrer dos homens”. A partir desse momento, inicia-se a competição entre os santos: qual era a melhor história?

– Exageras tudo, João Batista, […] ainda hoje aconteceu aqui uma coisa que me fez sorrir, e pode ser, entretanto, que te indignasse. […] Tu, João Batista, e tu também, Francisco de Paula, e todos vós haveis de sorrir comigo […] já intercedi e alcancei do Senhor aquilo mesmo que me veio pedir esta pessoa.

– Que pessoa?

– Uma pessoa mais interessante que teu escrivão, José, e que teu lojista, Miguel…

– Pode ser, atalhou S. José, mas não há de ser mais interessante que a adúltera que aqui veio prostrar-se a meus pés. Vinha pedir-me que lhe limpasse o coração da lepra da luxúria […] Começou rezando bem, cordialmente, mas pouco a pouco vi que o pensamento a ia deixando para remontar aos primeiros deleites […] a alma, que eu espiava cá de cima, essa já não estava aqui, estava com o outro.  

Francisco de Sales replicou que não havia caso melhor que o dele, referindo-se a uma “pobre alma ferida do mal da terra, que a graça do Senhor ainda pode salvar”.

Nesse ponto, o capelão, aterrorizado, tremeu em seus pensamentos: “Aqui fiquei com medo; lembrou-me que eles, que veem tudo o que se passa no interior da gente como se fôssemos de vidro, pensamentos recônditos, intenções torcidas, ódios secretos, bem podiam ter-me lido algum pecado[…]”. Apesar de todo o pavor, o padre estava completamente tomado pela curiosidade. Afinal, S. Francisco de Sales, revelou o seu caso: seu devoto, o Sales (seu xará) tinha uma esposa muito doente, com erisipela, e ele era “usurário, como a vida, e avaro, como a morte”, entretanto, “ a mulher deste Sales é amada deveras pelo marido”. Não obstante toda a mesquinharia do Sales “naquele muro aspérrimo brotou uma flor descorada e sem cheiro, mas flor” […] Só um milagre poderia salvá-la”. O devoto pensou em prometer uma perna de cera ao santo, pois, como era de se esperar, tinha apenas uma religião “vaga e econômica”, todavia o desespero que o dominava, a possibilidade de perder a esposa… Por fim, deu-se conta de quanto a perna de cera poderia lhe custar. Por isso, sendo extremamente avarento, apenas suplicava ao santo que intercedesse por sua mulher, sem ter de gastar nada: daí a promessa “não acabava de sair”. […] Aqui o demônio da avareza sugeria-lhe uma transação nova, uma troca de espécie, dizendo-lhe que o valor da oração era superfino e muito mais excelso que o das obras terrenas”. Sales, para se esquivar do gasto com a perna de cera, começou a rezar, alucinadamente: “Que lhe salvasse a mulher, e prometia trezentos, – e não menos trezentos padre-nossos e trezentas ave-marias. […] Foi subindo, chegou a quinhentos, a mil padre-nossos e mil ave-marias. […] E voltavam as palavras lacrimosas e trêmulas, as bentas chagas, os anjos do Senhor…1000 -1000-1000. Os quatro algarismos foram crescendo tanto, que encheram a igreja de alto a baixo, e com eles, crescia o esforço do homem, e a confiança também; a palavra saía-lhe mais rápida, impetuosa, já falada, mil, mil, mil… Vamos lá, podeis rir à vontade, concluiu S, Francisco de Sales”. Nesse momento, todos os santos riram, “um riso modesto, tranquilo, beato e católico”.

Após ouvir as histórias contadas pelos santos que criticavam e ironizavam suas devotas e deus devotos, o padre desmaiou e só acordou no dia seguinte; “Corri a abrir todas as portas e janelas da igreja e da sacristia, para deixar entrar o sol, inimigo dos maus sonhos”.

Esse colóquio entre santos que falam sobre a vida alheia evoca a polêmica obra de Luciano de Samosata, Diálogo dos mortos (mencionada acima), que inspirou a escrita de muitos autores em diferentes épocas e nacionalidades, tais como, Dostoiévski (século XIX), na Rússia, chegando até o nosso Machado de Assis – não só em Entre santos, também em outros escritos do Bruxo do Cosme Velho. No conto, como exemplo de sátira menipeia, o objeto elevado (os santos da Igreja Católica) é desmascarado, aterrissado. Os santos, igualando-se aos homens e às mulheres, comentam livremente sobre a vida dos outros, realizando seus julgamentos e fazendo escárnio dos “pecados” e aflições de seus fiéis.

Ao término do conto “Entre santos”, fica a questão: o velho capelão afirmou, inicialmente, que vivera uma “aventura extraordinária”. Ou terá sido apenas um sonho? Isso realmente importa? “O estilo literário machadiano nunca dispensa um safanão estilístico ou um tranco narrativo no leitor preguiçoso” (SANTIAGO, 2016).

Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira é doutora em Estudos de Literatura (UFF) e autora de Graciliano Ramos: a melancolia e as ironias da memória (Kotter Editorial, 2022).

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