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Já tenho 28 repetidas. Tenho da Zâmbia, Nigéria, Haiti (uau! o Haiti na Copa!), Vietnã, Alemanha, Brasil, Marrocos, Nova Zelândia – a anfitriã. Ora, é da Copa do Mundo Feminina, não seria no Catar. Há pouco descobri o álbum de figurinhas. (Re) descobri o cheiro da cola, as tabelinhas de jogos, o jogo do bafo, o riso das caretas, sobrenomes impronunciáveis, a procura por “quem quer trocar”… Revi a menina torcedora, que adorava ver e jogar futebol. No álbum de fotos acomodado na estante da casa da mãe, uma foto de criança com 3 anos, camiseta do Brasil e um bigode de canetinha riscado no rosto. Revi a menina criadora de personagens arrancando desespero de mãe e risos de leitores de histórias familiares.

Perdi, há anos, a graça dos álbuns da Copa – muito mais pelas interferências políticas e econômicas que estragam o futebol mundial e pelo comportamento deplorável de alguns jogadores do que por gosto pessoal (como olhar para jogadores enquadrados em crimes de violência sexual contra mulheres, enquadrados em figurinhas?!). Esse gosto pelas Copas, porém, que por vezes tento apagar por uma consciência de mundo, ressurge muitas vezes me revelando a mim. Já tive o álbum do primeiro filme do Harry Potter também e na Copa de 2018 comprei figurinhas junto com meu primo. Ano passado, na euforia dos álbuns da Copa do Mundo Masculina, me surpreendi e surpreendi meus alunos ganhando deles no bafo.

O álbum da Copa do Mundo Feminina me trouxe uma memória ressignificada. O que vejo agora também são rostos de atletas, rostos, porém, de mulheres, muitas pouco conhecidas e poucas muito conhecidas. Na seção das figurinhas prateadas, com o subtítulo de “O futebol une o mundo”, destaques de jogadoras com adjetivos qualificando os seus desempenhos. Ah, como eu queria que esse mundo fosse de fato todo o mundo! Aliás, o álbum também me trouxe o mundo transformado, o da poluição digital em que vivemos… Pra que tantos QR Codes?!

Comprei o álbum pela internet e, por coincidência, ele chegou no dia do meu aniversário. Reencontro nas datas de nascimento das jogadoras a minha geração e gerações posteriores. Volto à menina jogadora para quem o esporte não era incentivado como carreira e percebo: as mulheres que agora estampam o álbum criaram um presente que pena para reconhecer uma memória. Ora, às mulheres foi permitido há pouco o sonhar ser jogadora, sonhar ser empresária, o sonhar ser jornalista, o sonhar ser médica, o sonhar ser escritora… o sonhar ser. A muitas, porém, em vários países do mundo que não constam no álbum, não é. O enfrentamento do controle imposto sobre os corpos e vontades das mulheres ainda é constante.

É por isso também que nesta Copa volto ao emocionar. A última Copa Masculina assisti com enfado. Agora, porém, me surpreendi emocionada, inclusive, com um comercial de operadora de telefone. Não lembrava que isso era possível, se emocionar com anúncio publicitário de operadora de telefone. Acho que em matéria de propaganda de telefonia eu parei nos DDDs coloridos birrentos do “faz um 21” e, em matéria de operadora, a memória é dos irritantes: disque 1 para… disque dois para… (eu só disco aquele para falar com alguns de nossos atendentes), Denise, nós temos um combo especial para você, seu cartão CY6Jbankplusdefinition já está pronto…

Voltando às emoções, o comercial apelou para o Milton Nascimento, aí né, quem não chora?! Os versos são da mulher “que merece viver e amar como outra qualquer do planeta”, mas que traz no corpo as marcas, que precisa ter força, precisa ter gana, ter sonho, que é cor, som e suor… Ah, Milton! Nossos enfrentamentos não têm descanso! Nem sentadas em frente à televisão. Se um comercial pode emocionar, o outro, volta aos estereótipos e aos constrangimentos do corpo feminino. Uma famosa marca de guaraná brasileiro insere em uma conversa cotidiana a harmonização facial. O discurso subjacente é o da mulher submetida diariamente à fiscalização estética. Olho para o álbum de figurinhas ao meu lado, uma variedade de rostos de mulheres de diferentes países, com sorrisos espontâneos dada a possibilidade e participação no evento ou com o semblante sério com a concentração que a participação no evento demanda. Eis a harmonia!

Vejo em cada rosto fotografado para o álbum uma biografia. Cada mulher ali traz narrativas que constituem as suas memórias individuais, com trajetórias que construíram até a Copa do Mundo de 2023. Não conheço a história da grande maioria delas. Mas, agora, reconheço que fazem parte da nossa memória coletiva. O álbum ressignifica minha memória de torcedora: pelas mulheres em todos os esportes, por todos sonhos possíveis das crianças que se verão mulheres onde quiserem.

Por falar em biografias, recebi o convite para escrita desta coluna, feito pelo editor e escritor Daniel Osiescki (a quem faço questão de agradecer publicamente), na mesma semana em que um texto meu escrito em 2017 foi redescoberto nas redes e chegou a novos leitores. Trata-se de um exercício biográfico sobre a escritora Gloria Kirinus, no qual entrevisto algumas personagens de livros da autora. Entre leitoras e alunos, as histórias de Gloria evocam memórias. A mim, o resgate do texto me levou a reencontrar a Denise de 2017, aluna de uma disciplina sobre biografias, pesquisadora, escritora de narrativas que nos anos seguintes se tornariam publicações literárias.

Evoco, assim, reencontros com narrativas de memórias e esquecimentos, que compõem individualidades e também constituem o mundo em que vivemos. Para este nosso presente, as discussões sobre o lembrar são urgentes. Essas urgências estarão aqui nesta coluna.

Entre memórias individuais e coletivas, portanto, temos nossas narrativas. Quais são as suas novas e as suas repetidas?

Denise Miotto Mazocco é graduada em Letras e História, professora de Língua Portuguesa, mestre e doutora em Linguística, e assina coleções de livros didáticos. Como escritora, publicou os infantis Primeiro Voo (Editora Insight) e Peças e Pensarias (Editora Inverso), e os contos de Por quem os ipês sofrem (compre aqui). Em breve, lançará seu primeiro romance: Da memória, da história e do.

9 respostas

  1. Denise muito emocionada em ler seu texto, muitas memórias minhas atiçadas por sua escrita, …”por todos sonhos possíveis das crianças que se verão mulheres onde quiserem.” E sigo a lendo e revivendo, muita vida em suas palavras!

  2. Tá louco que texto. Muito bom Deni, a rainha do bafo kkkkkk. Uma grande e oportuna análise vinda de memórias da infância, quando tudo vinha embalado com papel de inocência , sonhos e alegrias. Aplausos !!!!

  3. Gostei do nome da coluna- Umas cuias com a memória. Quantos da geração deste “ nosso presente” sabem o que é uma cuia?
    Parabéns pelo texto, Deni! Sucesso!

  4. Muito bonito o texto, Denise. Parabéns ! Voce foi muito feliz na escolha do título da coluna. Desejo muito sucesso, vou acompanhá-la de perto.

  5. Opa, sonhos de crianças em coleções de figurinhas, bolinhas de gude, tampinhas, palitos de picolé premiados, pandorgas plásticas das Casas Pernambucanas, chinelos feitos pela vó, bonecas, carrinhos, bichinhos de estimação de pelúcia e vivos…ih, lembrei do porquinho meleca, de um pintinho…de um coelho, dos três portinhos chamados bacon, presunto e linguiça….mundo menos maldoso e respeitoso com os bichanos…haviam uns livros….que livros….não por nada Letristas natos… parabéns Deni Feliz…

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