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Assionara Souza em depoimento para Bárbara Tanaka, em setembro de 2015

Às vezes eu acho que acreditar em Deus somente em um único momento da vida é covardia. Ou você acredita sempre, ou você não se dá o luxo de acreditar de vez em quando.

Eu fiquei doente e comecei a acreditar em Deus alucinadamente. Eu pensei “vamos lá, é isso aí” e procurava alguma coisa. Até meditação eu tentei. No I Ching eles chamam de céu superior. É algo que move todas as esferas e está relacionado ao universo, desde a sua célula até toda a sua medula — mas eu não consigo entrar em sintonia. É sempre um movimento alucinado, horrível. Eu escrevo e também percebo que aquele movimento é frenético, como se houvesse uma coisa meio louca nos meus textos. Não sei se é bom, não.

Eu acho que cada um tem um pedaço de terra cheio de tralha e começa a carpir o terreno do amor. Você vai lá, limpa tudo, tenta fazer o melhor, se desespera, sofre, ouve… E quando o terreno está limpinho, pronto pra produzir, ele esgota. Já não serve mais para nada. Duas pessoas se separam, e naquele terreno existe uma história. Olha, a galera que não casou depois dos trinta, quarenta anos é tudo adolescente. Um bando de adolescente velho.

Uma namorada minha falou que eu não sabia amar. Que amor não é isso. Que eu fui egoísta — eu fui egoísta e estou contando a minha história, mas o que tinha entre nós já havia acabado e, mesmo assim, eu forçava. Sabe quando o relacionamento está acabando e você ainda tenta arrastá-lo? Eu não consigo terminar a história. E eu estou me recusando a escrever sobre isso — porque quando eu escrevo… Acaba, entende?

Eu começo a me comparar com a nova pessoa da vida dela. Ela é uma mulher que mora em um puta apartamento, tem uma estrutura de vida adulta que eu nunca tive. Eu escolhi ser escritora, mas o que é ser escritora no Brasil? Não é nada: é ser artista no Brasil. Mesmo que você tenha grana.

Ainda assim eu acho a literatura meio covarde, porque ela produz essas coisas bonitas a partir de um lugar que não é. É como se fosse uma assimilação, um filtro de beleza que não aconteceu, onde tudo fica retido no sujeito e só aí ele se expressa. Você não pode represar a beleza.

Mas eu acho a literatura covarde. Eu lamento que a arte exista. É trágico isso, não precisava. A arte só existe porque nós somos infelizes. Onde há felicidade, há beleza, e não se fala em arte.

Acho que eu nunca mais vou me apaixonar. Eu penso na Susan Sontag — tomara que ela atravesse essa história e viva a vida, porque eu sempre tive medo de morrer. Tive medo de adoecer, medo de viver, do amor, medo de que minha literatura não sirva pra nada.

E então falei pra minha outra namorada, antiga, que é médica: ela me ajudou quando eu fiquei mal. Eu falei que eu não poderia namorar mais ninguém, porque na vez que ela rompeu eu sofri um acidente, e eu fiquei doente. Uma doença punk; assim, a doença punk do universo. Então da próxima vez eu vou morrer.

E as coisas burocráticas, pra mim, não dizem nada, sabe? Porque eu estou sempre mentindo. Estou sendo profunda porque sei que estou sendo gravada, pura falsidade. Eu já menti até que um dia eu já havia lido Hemingway.

 

× × × × × × × ×

in memoriam.

2 respostas

  1. A Narinha encarnava esse movimento pendular da experiência humana. Ela avaliava todas as possibilidades e não se encapsulava numa única ideia sobre a vida. O primeiro livro ‘Cecília não é um cachimbo’ já aponta para, além do diálogo/ trocadilho com Magrite, o impermanente da vida, das relações, do amor, de deus ou deuses. Saudades de nossas conversas. Obrigada Bárbara por preservar isso.

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