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As cigarras pacificam a tarde com um canto entorpecente. Em coro, os grilos as acompanham neste dia quente. A primavera derrama-se às portas do verão, colmada que foi pelo frio a um tempo extemporâneo e apocalíptico. Sei por boas fontes que isso não ocorreu só na fria Curitiba, mas em muito estado mais ao norte e menos gelado. Sei também que o verão é a estação que nos leva de 2021 para 2022. E antes que saltemos daquele para este, carece acertar alguns assuntos pendentes.

Devo algumas palavras à Ludmila, graciosa gatinha que nos encontrou na praça Florinda Bozza, no Pilarzinho. Lud riscou o ar com um fino miado, enquanto eu, Adriana e Aurora caminhávamos por ali. Minha filha quem ouviu o som vindo do ramo de uma árvore no centro da praça.

– Olha, pai!, mãe!, um gatinho!

Gateira megagraduada, a Aurora veio com a pequena no colo. Cinza e branca, macíssima, encantou-nos com aquela candura indecente de filhote.

Ludmila ainda não tinha esse nome. Antes foi preciso certificar-se que havia sido abandonada, encaminhá-la para a veterinária, descobrir lhe o sexo, castrá-la e aí sim encontrar-lhe um felinônimo adequado. E depois levá-la para casa. Foi aí que deu ruim. A aveludada Lud foi tratada asperamente pelos felinos da casa. Com exceção da Joaquina, que a aceitou, um tanto indiferente, Madalena e Godofredo a receberam com jabs felinos e saltos de jiu-jitsu, o que deixou a doce felídea estressadíssima.

Quem resolveu o drama da gatinha foi dona Hilde. Levada pela Vilma, amiga gatóloga, e pela filha Simone, a octogenária senhora desdenhou dias, meses, anos, séculos e milênios ao encantar-se instantaneamente por Ludmila. Acertada a união, a gatinha entrou na sua caixa e fomos nos despedindo enquanto a felina apanhava no ar sua nova identidade, Belinha, nome escolhido por dona Hilde. Dos olhos da Aurora escorria um Orinoco de lágrimas. Dava pra ver a dorzinha que a gata lhe deixara no peito.

Dor sentiu outro filhote, agora de pássaro, sequestrado por Godofredo, o gato traquina aqui de casa. Tarde dessas, Adriana me chamou sem economizar nos decibéis:

– Godofredo pegou um rato!

Foi o que ela pensou porque o nosso arteiro tem o hábito de apanhar uns mouses desavisados e arrastá-los pra casa. Corri e estranhei o som que a presa fazia. Quando me aproximei, vi um maço de penas trespassado por um longo bico palrador acomodado entre os dentes do gato. Era um filhote de pássaro graúdo. Consegui distrair o Godofredo e salvei o plumado de um destino funesto.

Com o bípede na mão, fiz o de praxe: fotografei-o e enviei a imagem para o grupo de Aves e Pássaros do Facebook. Um ou dois minutos depois me responderam: foi aí que descobri que aquela assustada avezinha era um Quero-Quero kid. Graças aos meus colegas do grupo — e aos descolegas que me acusaram de sequestrar o filhote ou de deixar o Godofredo circular livremente pelas ladeiras e morros do Pilarzinho –, soube o que fazer com o jovem Vanellus chilensis. Tinha de levá-lo de volta à casa dos pais.

A Adriana deu a letra, sabia que havia uma turma deles no gramado do vizinho de cima. Fomos lá, achamos os pássaros-parentes, e vimos o bichinho reencontrar, aliviado, seu ninho.

As cigarras haviam emudecido e o ar pulsava sob o canto compassado dos grilos. Como um filhote acolhido, a noite relaxava sob a música dos insetos. Por alguns minutos me pareceu que 2022 viria de boa, a despeito de todos os sustos. Não sou de otimismos, mas resgatar filhotes e vê-los seguir suas vidas tateantes abrem algumas janelas. Por ora, que se dane quem vive de destruir o Outro, a vaibe nesse punhado de dias que antecedem o ano novo é outra, pelo menos aqui entre nós.

Feliz 2022!

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