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(por Eugênio Vinci de Moraes)

Acordei com uma vontade canina de ir a um sebo. Há mais de um ano sem pisar num deles era de se esperar, mas esse desejo nasceu de um sonho na noite passada. Chovia muito nele. Fui levar cobertores para moradores de rua. Conversei com um casal que dormia num berço. Par que súbito reconheci serem marionetes de madeira. Despertei assustado quando os imaginei comandados por um titereiro ou um ventríloquo. 

Uma comichão me manteve irrequieto o dia todo. Por certo alguém me manipulava, por dentro e por fora, querendo me atirar na rua. O que me impedia de sair era a chuva, que ignorou a transição do sonho para a realidade. No final da tarde, a inércia rompeu-se. Feito fantoche, de máscara na cara e álcool em gel no bolso, me embrenhei de carro pela selva líquida que cobria a cidade. 

Pelo vidro embaçado, a imagem de um malabarista de sinaleiro, vestido de preto, enroscava-se entre os veículos atrás de uns trocados. De máscara e molhado, o funâmbulo correu para a calçada, onde protegia seus equipamentos debaixo da marquise de uma loja de fantasias. O semáforo abriu, limpei com as mãos o vidro, segui o fio pela Visconde de Nácar e entrei na Comendador Araújo, rumo ao sebo Kapricho. 

Parei uma quadra à frente. A vida comercial fluía, indiferente ao frio e à chuva, noves fora a pandemia. Se não me engano, era neste quarteirão que ficava a última loja da livraria Ghignone. Cheguei a conhecê-la quando ela já exalava o hálito do seu fim. Uma confeitaria a substituiu. Segui adiante e rapei ligeiro pelo Centro Empresarial Adam Smith, que percebi zombar do vizinho, o Mundo Egípcio, que liquidava mercadorias pela metade do preço. Minhas pernas ignoraram o melodrama do capital e me puseram a salvo, do outro lado da Brigadeiro Franco, já na quadra do sebo. 

Reencontrei amistosas as velhas prateleiras e pendurei-me nelas por cerca de uma hora. Não zanzei por tudo nem fiquei lambendo livros pelo tempo de que gostaria. Generosa, a livraria se esquece corredores adentro, isolando-nos da cidade, acolhendo-nos em seu labirinto. Escolhi alguns livros, e um me escolheu, O Homem invisível, do Ralph Ellison. 

Mal passei pelo caixa a noite riscou a tarde fora e o dia foi se desamarrando, levando com ele um sentido que não apanho. 

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