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por Bruno Nogueira

 Damiano estava lá quando o pai morreu. Caos no corredor do hospital, a médica responsável ricocheteando entre salas e corredores, suor sob a máscara. A entrada era proibida, mas Damiano desconfiou. Sempre discreto, esgueirou-se, aproveitou o caos: e era mesmo. Foi expulso pela médica que finalmente o notou. Reparou nos olhos puxados com desconfiança. Tinha ouvido dizer que. Mas o enfermeiro que o acompanhou à saída foi simpático.

            Não sofreu com a morte do velho, que reaparecera em sua vida poucos meses atrás, já entrevado. Queria perdão. Melhor: queria sentir-se bem. Achava que o esforço de pedir perdão era suficiente para merecê-lo, e Damiano deixou que achasse: seu gesto de bondade.

            Tudo confirmado e assinado, sai do hospital portando os documentos e as poucas coisas do velho, as chaves da casa vibrando no bolso. Graças ao medo do contágio, felizmente não cabe a ele decidir o que seja sobre o enterro, nem são dele os custos. A carteira do velho tem umas centenas de reais: primeira parte da herança cujo destino já planeja.

            O uber exige a máscara, que Damiano veste desgostoso. Não quer discussão. Ainda tem dúvidas sobre a morte do velho. Também desgosta do vazio da cidade, ruas sem roupa deslizando pelas janelas. Muito menos pedestres, carros, ônibus. Quase espera ver animais reivindicando os espaços vazios, como fosse um tipo estranho de floresta, como se todos mortos com o velho.

            Paga o uber em dinheiro, a ansiedade tanta que a máscara, já desabrigado o nariz há um tempo, desce antes mesmo que o troco venha e ele saia. Abre o portão metálico do jardim cuja própria existência é raridade na cidade grande, mesmo que se reduza a um canto de terra de um metro, onde o mato bravo cresce solto e perturba a passagem. Já sonha ali a horta que nunca plantará. A porta da sala, semi apodrecida, emperrada, ele abre com o auxílio de leve pressão do ombro.

            Damiano entra e olha ao redor. É como se o lugar fosse outro. Fecha os olhos, se senta no sofá, e chora. As mangas da camisa ficam encharcadas, como se secasse nelas o suor de um dia de trabalho intenso. A casa é sua. Deus é bom.

            Senta-se por alguns segundos, submerso no silêncio do êxtase que persiste. Olha o crucifixo de madeira na parede a sua frente. Sorri para ele. Faz o sinal da cruz.

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