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Alguém já vestiu apressadamente uma peça de seu vestuário, engoliu o café e seguiu sua jornada ao trabalho, escola e outras rotinas, miudezas, afazeres, viagens… como não houvesse o amanhã, ou quem sabe o período da tarde? O relógio marcando o compasso, os dígitos diminuindo o tempo no celular, as horas engolindo a sua vida que escorre… horas, minutos, segundos.
Esbaforido, não se deu conta de que em algum momento, alguém, gentilmente, quase em um sussurro, para não encabular você, lhe dirá que sua jaqueta está ao avesso.
Poderia ser um sapato trocado, uma camiseta ao contrário, uma etiqueta pendurada ou quem sabe até uma camisa ou calça do pijama, fazendo parte de seu uniforme, ou roupa da semana.
Enquanto a sua vida esfarela-se a cada nascente, por sobre os viadutos, carros e caminhões seguem seus destinos, talvez não tanto acelerados como você.
Quando a vida aperta e não há saídas para questionamentos, procuro minha companheira, Angela, para que possamos através do diálogo, da bendita palavra, encontrar soluções ou caminhos para resolver certas questões. Há situações em que nos falta uma praticidade, por mais que a minha esposa tenha os pés fincados ao chão e eu, como sempre, a cabeça nos infinitos impossíveis.
Precisamos resolver logo, não vemos uma saída à altura, Angela me diz:
– Fale com o C., ligue para ele.
Atencioso e com respostas precisas, com a decisão certeira, nosso amigo dá seu veredicto.
Já nos salvou de cada coisa e nos fez sanar problemas.
Pensamos em criar o “disque C.”, todos os dias da semana, das 8h às 22h. Esse querido amigo é precioso demais. Achou maluca a nossa ideia, sorriu e consentiu que eu fizesse público este agradecimento.
Apressadamente o dia se deu, fui renovar a carteira de motorista. Bem gentil, a doutora pediu para que eu olhasse as letras, grandes, pequenas, miúdas, miudíssimas.
– Estas, não consigo.
– Tente novamente.
– Não dá.
– Deixe-me ver os seus óculos. Nossa, está bem riscado!
Sinto que não vai dar certo. Após enxugar as lentes:
– Tente agora.
Persigo as palavras. Minha vista não é boa, não consigo.
– Desta vez, não deu. Terá que fazer novos óculos e marcar o retorno. Haverá um nova taxa também.
Agradeço.
Percebo um certo olhar penoso para comigo, entristeço.
Quando encontro minha esposa, ela me diz:
– A sua camiseta está do avesso. Como você vai fazer um teste de renovação de carteira assim?
Começo a sorrir em descompasso.
– Deve ter pensado que tenho problemas. Que, além de não enxergar as letras, não devo estar me enxergando no espelho.
Angela me diz:
– Ligue para o C. Ele vai gostar de ouvir essa história.
O Telefone toca, ele atende, conto sobre a reprovação por causa das vistas cansadas e a conversa termina em sorrisos.
Alguém apressadamente veste a primeira roupa que encontra no armário, teme perder o horário da entrevista de emprego. Ao chegar lá, o homem de terno e rosto sisudo observa sua roupa, rosto e postura. Ela só saberá mais tarde que está tudo tão certinho nela que uma camisa ao avesso faria a diferença para enlouquecer a mesmice que consome os dias, as horas, os minutos e os segundos.

Fabio Santiago é poeta e prosador. Publicou os livros Intramurus, Versos magros (compre aqui), Mar de sombras e Cantos temporais. Seu trabalho mais recente, A marca do vampiro, disponível aqui. Instagram: @fsantiago006

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