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Por Marcos Pamplona

Quando as pessoas “de bem” precisam de prazer, vão buscá-la.

Nos seus braços, lembram-se que são humanas, escravas de um desejo alheio ao destino que se impuseram, que outras criaturas passam pela poesia sem deixar rastros de sua permanência na efêmera confissão de amor à perda: de família, dinheiro, morada, nome, “dignidade”.

A poesia é essa vagabunda que atende a homens e mulheres com pernas abertas, desde que receba, ao fim da foda, os caraminguás dos que sempre voltam à santa realidade.

Ninguém no fundo quer a poesia. Basta que ela exista, no apart-hotel distante dos humores inconfessáveis. Nós criamos esse espaço pra ela, métrica confinada para o desejo liberto do método. Ela que fique lá, entre cédulas sujas, fodida pelos passantes, com sua janela para o mundo que não pode e jamais poderá habitar.

A poesia, depois dos tecos e dos goles, se maquia, se perfuma, se veste de submissa ou tirana para a recorrência livre-epiléptica dos indiferentes. Ela finge não estar nem aí, esse é o negócio, afinal. Ela diz para a tal janela:

 

             PORTA*

            O estranho

            bate:

            na amplitude interior

            não há resposta.

            É o estranho (o irmão) que bate

            mas nunca haverá

            resposta:

            muito além é o país

            do acolhimento

 

Nada se perde com a poesia, porque em sua “casa” tudo está perdido. A mobília é anônima, o espaço é passagem. Uns querem ser Cinderela, outros bruxo cozinheiro: serão, neste quarto nada falta à falta cruel da fábula preterida.

As pessoas se lembram da poesia, no comum do mundo, como de um poço da infância. Água pura jamais provada depois. E, já velhas do miasma do deserto, vão buscá-la no estigma consanguíneo da puta.

A poesia não perde o rebolado:

 

            BUCÓLICA*

            Vaca

            mansamente pesada

            vaca

            lacteamente morna

            vaca

            densamente materna

            inocente grandeza: vaca

            vaca no pasto (ai vida,

            simples vaca).

 

Todos os passantes serão esquecidos. A puta, porém, espancada por sua entrega à natureza abismal do outro, velha, falida, dorme agora nesta página, ao meu lado.

 

*Poemas de Orides Fontela.

2 respostas

  1. Essa visão da poesia, como uma espécie de vaca profana, que alimenta e liberta, uma putana endoidecida enfim, não chega a ser inteiramente nova, nem haverá de chocar ninguém que o propósito não é este. Mas aqui, tratada com muita elegância e propriedade, reforça a potência da linguagem, o calor da palavra. Ilustrado magnificamente com poemas de Orides Fontella, o texto me fez pensar numa outra grande poeta brasileira, Adelia Prado, para quem a poesia tem sim, algo de sagrado, no sentido mesmo de um assombro, um espanto enfim, que se aproximaria da epifania religiosa.

    E conforme diz o autor, com precisão: “Nada se perde com a poesia, porque em sua “casa” tudo está perdido. A mobília é anônima, o espaço é passagem”.

    A poesia então seria essa experiência que se verifica pelo estranhamento do familiar e doméstico; que se interpõe entre o humano e o divino como tentativa de suprir uma ausência, tão inefável quanto inegável. Na consciência de uma angústia da finitude, a poesia liberta e “abençoa” o homem ao mostrar que, sim, é bonito “desmanchar-se”. E que belo também é o que revela a fragilidade do viver, O que punge sem o menor pudor. Sem a poesia, estamos no deserto.

    Nesse ponto, encerro aqui o comentário com estes versos de Hilda Hilst, que parecem dialogar de frente com a abertura do texto e chutar de vez o pau da barraca:

    (…)
    Pensei subidas onde não havia rastros
    Extasiada, fodo contigo
    Ao invés de ganir diante do Nada.

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