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por Bruno Nogueira

 

Madrugada em julho, ele caminha numa rua cinzenta de Curitiba, jaqueta de couro sobre blusa de lã, cigarro na boca e cerveja na mão.

Na quadra de casa, passa de novo pelo casal. Ali há semanas, os dois, escondidos da vista por uma régua de papelão que se apoia escalena contra a fachada de uma casa abandonada, escondidos do frio por um só cobertor de microfibra. Ele tirita. Passaria direto, mas de repente escuta uma voz que canta baixinho. Olha ao redor, mas não acha. O som vem do papelão.

Não entende. Aspira o ar e sente o cheiro pior que nunca, cheiro forte de merda que acumula diário atrás da fachada que já foi de casa e hoje esconde um terreno baldio. São os dois, certeza, que dão jeito de entrar e cagar no terreno feito bicho, e depois dormem ali feito não tivessem olfato. A comida deles se vê pelo chão, compartilhada com outros animais e insetos, ímã das baratas e ratos que o casal ignora.

E de repente, o homem de papelão canta. Numa pausa da canção, troca de mão a cerveja e decide aguentar o cheiro de fezes, quer ter certeza. Pensa em alucinações e espera, até que o canto volta feito flor do pavimento — mas ele é incapaz de associar o cantar àquele corpo, ao bicho largado no chão no frio no fedor, no terror das paredes de papelão e do asfalto. Se assusta, um medo impreciso se mexe nele. Só se percebe parado quando a cinza do cigarro quase queima seus lábios, o que ele evita com uma cusparada de saliva catarro susto e cinza incandescente em baque contra o papelão — e a cantoria para.

Ele gela. Escuta o silêncio. Vê o movimento do cobertor pela ponta que escapa ao papelão. E dispara, galinha em pânico, a mão direita busca a chave no bolso, não olha pra trás, se recusa a imaginar o casal saindo dali, falando, olhando pra ele com olhos de gente, olhos, olhos em que acabaria olhando de volta.

 

*Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba, onde busca concluir um mestrado em literatura.

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