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por Marcelo Ariel

“Anastácia, cidade enganosa, tem um poder, que às vezes se diz maligno e outras vezes benigno: se você trabalha 8 horas por dia como minerador de ágatas ônix crisópasos, a fadiga que dá forma aos seus desejos toma dos desejos a sua forma, e você acha que está se divertindo em Anastácia quando não passa de seu escravo.”

Italo Calvino, in “As Cidades Invisíveis”

1.

Da farsa da compreensibilidade e da necessidade de um treinamento para a visão não binária das coisas do mundo.

Não, o título não está errado, você leu corretamente, é como se fosse parte de uma frase da qual não conhecemos o início, nem a sequência. É fácil associar essa ideia ao mundo de hoje, embora isso não sirva para explicar a atual situação de devastação e decadência nem para apontar onde estão as chaves que abrem alguma porta para ele, onde estão essas outras  chaves, certamente mais úteis do que a chave da ironia, do cinismo e a do niilismo que não abrem porta nenhuma. Poetas e cronistas não tem como centro de suas atividades, defender uma tese sobre a realidade, é exatamente o oposto disso que me move. Muitas dicotomias irão se revelar insuficientes ou falsas no breve tempo histórico que nos resta. Estou falando do tempo histórico e não do tempo da internet, existe uma diferença criadora de abismos entre estas duas noções do tempo. A compreensibilidade em breve estará na categoria “dos mitos”, algo que parece possível quando o que se diz está envolto no manto espesso do senso comum e muito difícil quando o que tentamos dizer é o óbvio. É necessário um treinamento de anos ou décadas para sermos capazes de ver o óbvio como uma irrupção não binária do mundo, treinarmos nossa visão interna para que ela seja capaz de ver pelo meio e entre as coisas e não parcialmente, a visão é um órgão de atravessamento, a visão é ela mesma um poema.

2.

Das origens imanentes da poesia italiana

A poesia italiana não foi ‘fundada’ por Dante ou Petrarca como pensávamos, mas por Giovanni di Pietro di Bernardone, conhecido como FRANCISCO DE ASSIS. O poema fundador, salvo engano, seria este:

CANTICO DELLE CREATURE

Altissimu, onnipotente bon Signore,

Tue so’ le laude, la gloria e l’honore et onne benedictione.

Ad Te solo, Altissimo, se konfano,

et nullu homo ène dignu te mentovare.

Laudato sie, mi’ Signore cum tucte le Tue creature,

spetialmente messor lo frate Sole,

lo qual è iorno, et allumini noi per lui.

Et ellu è bellu e radiante cum grande splendore:

de Te, Altissimo, porta significatione.

Laudato si’, mi Signore, per sora Luna e le stelle:

in celu l’ài formate clarite et pretiose et belle.

Laudato si’, mi’ Signore, per frate Vento

et per aere et nubilo et sereno et onne tempo,

per lo quale, a le Tue creature dài sustentamento.

Laudato si’, mi Signore, per sor’Acqua.

la quale è multo utile et humile et pretiosa et casta.

Laudato si’, mi Signore, per frate Focu,

per lo quale ennallumini la nocte:

ed ello è bello et iocundo et robustoso et forte.

Laudato si’, mi Signore, per sora nostra matre Terra,

la quale ne sustenta et governa,

et produce diversi fructi con coloriti fior et herba.

Laudato si’, mi Signore, per quelli che perdonano per lo Tuo amore

et sostengono infrmitate et tribulatione.

Beati quelli ke ‘l sosterranno in pace,

ka da Te, Altissimo, sirano incoronati.

Laudato s’ mi Signore, per sora nostra Morte corporale,

da la quale nullu homo vivente pò skappare:

guai a quelli ke morrano ne le peccata mortali;

beati quelli ke trovarà ne le Tue sanctissime voluntati,

ka la morte secunda no ‘l farrà male.

Laudate et benedicete mi Signore et rengratiate

e serviateli cum grande humilitate.

O CÂNTICO DAS CRIATURAS

 (tradução: autor desconhecido)

Altíssimo, onipotente e bom Senhor,

para ti sejam os louvores, a glória e a honra, e mais todas as bênçãos,

pois essas coisas todas, Altíssimo, somente a ti é que convêm

quando homem algum é digno sequer de mencionar-te.

Louvado sejas, meu Senhor, com todas as tuas criaturas,

especialmente o irmão Sol,

que nos dá o dia, sendo por ele que tu nos iluminas.

E o Sol é belo e radiante.

Com grande esplendor, ele é de ti, Altíssimo, a própria imagem.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Lua e as estrelas:

no céu tu as soubeste fazer resplandecentes, preciosas e belas.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Vento

e pelo ar que movimenta, tornando o dia nebuloso ou sereno,

pouco importa, pois sempre é por ele que nos dás o sustento.

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Água,

que, embora humilde, é sempre tão útil e muito preciosa.

Louvado sejas, meu Senhor, pelo irmão Fogo,

por meio do qual podemos iluminar e aquecer as noites:

como ele é belo e alegre e robusto e forte!

Louvado sejas, meu Senhor, pela irmã Terra,

que também é mãe nossa, pois nos sustenta e governa,

e produz frutas diversas e coloridas flores e ervas.

Louvado sejas, meu Senhor, por aqueles que perdoam por amor a ti

e suportam doenças e aflições.

Benditos aqueles que souberem enfrentar pacificamente os problemas,

porque tu, Altíssimo, saberás recompensá-los.

E louvado sejas, meu Senhor, até por nossa Morte,

que também é irmã nossa,

pois dela ninguém que viva pode escapar.

E ai daqueles que morrem em pecado mortal!

Mas benditos aqueles que, ao morrerem, tenham atendido as tuas vontades,

porque, quando vier a segunda morte, essa não lhes fará mal algum.

Louvemos, pois, o Senhor e lhe agradeçamos por tudo,

servindo-lhe sempre com grande humildade.

3.

De onde nada se conclui do que foi exposto ou a realidade deve ser ‘tornada real’ por atos sublimes

Caso esse poema fundador da poesia italiana fosse uma onisciente norma empresarial-industrial, o crime ambiental que se converteu em genocídio em Mariana e em Brumadinho não teria ocorrido. Giovanni di Pietro di Bernardone fundou não apenas a Ordem franciscana : também nesse poema, cria laços de parentesco entre nossa fenomenologia e o acontecer da natureza, coisa que só séculos depois será conceituada como ‘Ecofilia’. O poema de Giovanni vai ainda mais longe e fala na vinda de uma segunda morte, não havendo oposição entre a nossa vida, a primeira morte e essa misteriosa segunda morte. O uso da palavra ‘Senhor’ aqui serve mais do que para estabelecer um centro de autoridade, como uma metáfora de uma poderosa força externa que não podemos diferenciar do amor no canto derradeiro da Commedia dantesca. Façamos agora nesta crônica uma enorme elipse-pergunta, pensando nestas três coisas, a ética no ‘Cântico das criaturas’, a superação do pensamento binário que dilui nossa vitalidade e o crime-genocídio ambiental de Brumadinho. A pergunta elipse é esta:

Quando chegará para ti, Brasil, tua segunda morte?

*Marcelo Ariel é poeta e performer, autor dos livros “TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS” ( LetraSelvagem, esgotado), RETORNAREMOS DAS CINZAS PARA SONHAR COM O SILÊNCIO ( Editora Patuá, esgotado) , JAHA ÑANDE ÑAÑOMBOVY’A ( Editora Penalux), entre outros. Em breve será lançado OU O SILÊNCIO CONTÍNUO -POESIA REUNIDA 2007-2019 que está em pré-venda pela Kotter/Patuá: https://kotter.com.br/loja/ou-o-silencio-continuo-poesia-reunida/.

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