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por Marcelo Ariel

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Esta coluna é dedicada à poeta e performer Tula Pilar Ferreira.

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Distinguir ensaios de investigação que evitem a ansiosa eleição de um cânone na tentativa limitada de elaborar recortes crítico-historiográficos antecipadamente fadados ao fracasso é praticamente um dever dos leitores do presente. Trata-se de evitar algo que foi felizmente apelidado pelo meu amigo Ricardo Domeneck em sua página de Facebook  de “reunião de condomínio”, comentário-bólide que explicita a real dimensão do artigo recentemente publicado pelo jornal FOLHA DE SÃO PAULO por uma autoritária professora com geométrica formação acadêmica e péssimo faro – me abstenho de reproduzir os enunciados sem osso da referida professora e sua ótima réplica feita por Ligia Goncalvez Diniz, onde fui honrosamente citado, e a posterior tréplica que apenas reforçou os posicionamentos pré-pré-préconceituosos da tal professora em seu artigo que ambicionava ser uma crítica ao conteúdo da poética de diversos autores e autoras muito mal lidos pela digníssima senhora, que prestou com seu artigo um desserviço que em nada irá ajudar os seriamente interessados na poesia produzida no Brasil nos últimos vinte anos.
Não nego que o artigo da professora que evito a todo custo nomear pode ser de grande valia humorística para futuras gerações de estudiosos de Letras, habitantes provisórios de salas em cursos de LITERATURA COMPARADA. Encerremos aqui o assunto dizendo que essas tentativas narcísicas de elaborar uma perspectiva sem que a crítica ou crítico em questão possua fôlego e visão para nadar tamanhas distâncias exteriorizam-se como risíveis ao pensarmos em verdadeiras e densas análises como as efetuadas por outros críticos com verdadeiro conhecimento de causa, como Maurício Salles Vasconcelos, (o já citado) Ricardo Domeneck, Silvina Rodrigues Lopes, Nina Rizzi, Tarso de Melo, Gustavo Silveira Ribeiro, Ângela Castelo Branco, Ademir Demarchi, Guilherme Gontijo Flores, Alexandre Nodari, Cláudio Willer, Alberto Pucheu e outros que, ao contrário da autora do já antiassunto e hipercitado artiguinho, sabem nadar e mergulhar com mais elegância. Concluo dizendo que para ser uma boa, um bom escafandrista é preciso saber dançar com as águas vivas no fundo do mar.

Outra polêmica, desta vez causada pelo braço cultural do BANCO ITAÚ, o Instituto Moreira Salles: ao tecer um evento sobre poesia brasileira curado pelo poeta Eucanã Ferraz, entre outros, o instituto provocou o espanto e indignação de muitos, inclusive deste que vos escreve. Com a branquitude da lista elaborada pelos curadores, os desdobramentos do caso fora das redes sociais foram apenas dois: o autoritário cancelamento do evento pelo IMS – que perdeu a chance de uma revisão-repensamento de suas políticas culturais quando associadas ao pior das práticas de exclusão incrustadas na sociedade brasileira por um anacronismo histórico que ainda é uma força estruturante dessa mesma sociedade na atualidade – e uma mesa mediada por mim na FEIRA DESVAIRADA obstinadamente organizada pelos poetas Fabiano Calixto e Natália Agra na Biblioteca Mário de Andrade. A mesa formada pelos poetas André Capilé, Esmeralda Ribeiro e Gláucia Adriani só existiu, segundo palavras do André, por causa da polêmica em torno do caso criado pela lista do IMS. Desconheço outros desdobramentos fora do virtual do desastroso episódio. Tentarei fazer aqui um resumo que, aviso, será fragmentado e elíptico como quase tudo que tentamos recuperar apenas com a memória – infelizmente o debate não foi gravado em sua totalidade e o que temos como registro são apenas fotos e alguns excertos filmados.

André chamou a atenção para o que coloquei logo acima: o bruto e autoritário cancelamento do evento pelo IMS. O que podemos notar nesse fato é que o braço cultural do Banco Itaú praticou o já conhecido “apagamento do problema para que a questão não vazasse para a desvalorização social de sua marca”, demonstrando não ter, no fundo, nenhum interesse na problematização e em seus possíveis efeitos benéficos para o evento em si. André ressaltou que esse cancelamento foi uma violência ímpar contra os poetas convidados pelos curadores e contra o público do evento, gesto típico de instituições autoritárias e coloniais. Gláucia chamou a atenção para o fato de a maioria das curadorias culturais intencionalmente ignorar as chamadas zonas de exclusão, conhecidas como periferias. Ela, que organiza saraus na zona leste de São Paulo, testemunhou o fato de essa política segregacionista ter, por outro lado, criado potentes espaços de autonomia nesses territórios. Esmeralda, que chegou logo depois, levantou um pouco o histórico de lutas dos CADERNOS NEGROS, do qual é uma das assíduas editoras, da visibilidade inclusiva dos escritores e escritoras negros-negras, um dos vetores que motivaram a criação dos cadernos, e sobre como isso é resultado e resposta para as seculares práticas de exclusão que geram fatos como este do IMS – e, numa outra ponta, os OITENTA TIROS que assassinaram o artista negro Evaldo Rosa dos Santos. Existe uma ligação entre esses fatos, ela ressaltou. André comentou sobre a pouquíssima repercussão real da questão fora dos círculos limitados e paradoxalmente inflados das redes sociais, reduzidos e quase nulos como dinamizadores de AÇÕES SISTÊMICAS capazes de realmente modificar a realidade, algo que está fora delas. Ele enfatizou a necessidade de CRIARMOS ACÕES SISTÊMICAS para fora dos nossos guetos culturais, e Gláucia comentou que, nas periferias, os saraus são parte dessas ações. Como mediador, levei algumas questões para o debate. Vou reproduzir aqui o texto que li na abertura – como avisei no inicio deste artigo, ele é elíptico e fragmentado e se dá em um LUGAR DE FALHA, sábio termo cunhado por meu amigo e irmão Ricardo Aleixo para dizer de um lugar ONDE PODEMOS ERRAR E NOSSOS  ERROS PODEM SERVIR PARA NOS ILUMINAR BEM MAIS DO QUE O APELO POR UMA RÉPLICA QUE, MESMO NECESSÁRIA, CORRE O RISCO DE POTENCIALIZAR QUEM DESEJA NOS EXTERMINAR – risco que a história nos ensina não ser ilusório, basta olharmos quem está no poder. Vamos à necessária autocitação que aqui funcionará como um espelho do próprio problema, ele mesmo um oroboro em chamas:

Boa noite, apesar dessa tarde clara é noite no Brasil.

Um anacronismo histórico tornou o Brasil, o último país a abolir o comércio de escravos negros – ainda assim o escravismo continua sendo um poderoso paradigma cultural, e isso explica porque apenas recentemente Machado de Assis, um dos nossos maiores escritores, foi reconhecido oficialmente como preto. Estamos vivendo outro anacronismo histórico tão perverso e estúpido como aquele do período monárquico, que gerou a morte na monarquia, deixando como legado uma sociedade estruturalmente  racista e classista. Me pergunto quais serão os efeitos deste anacronismo histórico que estamos vivendo? Vamos ao tema desta mesa. Curadoria  é uma palavra que vem do latim, língua dos opressores romanos que foi maravilhosamente transfigurada por vários poetas da antiguidade. Deriva de curare, que é também o nome comum de vários compostos orgânicos venenosos conhecidos como venenos de flecha, extraídos de plantas da América do Sul que possuem intensa e letal ação paralisante, da qual um dos subprodutos é a estricnina. Ironias ao largo, o termo curadoria é também sinônimo de tutor e administrador. É portanto um exercício de poder, no caso do tema desta mesa, do PODER LITERÁRIO.

Portanto, o curador de um evento literário , deste inclusive, é um legitimo representante do PODER LITERÁRIO, embora existam curadorias e curadorias. Quando um miliciano em uma favela escolhe quem serão os pretos a serem executados , ele estaria fazendo ali também sua curadoria macabra. Ao ser convidado para ser mediador neste evento, recebi da Natália Agra um texto com algumas perguntas oportunas sobre o tema desta mesa: Por que sempre os mesmos nomes? Há, num país com uma população de mais 200 milhões de pessoas, apenas esses alguns poucos nomes que são constantemente convidados para os eventos literários de médio ou grande porte? Esse fato faz jus à riquíssima produção poética nacional? Por que só há olhos para autores das grandes editoras e grifes? A imensa e rica produção independente não tem vez? Onde estão as poetas e os poetas negros e indígenas? A pequena economia da cena (que viabiliza a carreira de muitos desses autores) será sempre concentrada nas mãos de poucos privilegiados? O que é ser curador num país continental e desigual como o Brasil? Os grandes espaços, detentores das estruturas que possibilitam a circulação e divulgação artística em grande escola, são excludentes? Se sim, isso é um projeto? Como transformar essas práticas e mudá-las de fato? Como pensar essas curadorias e fazer com que elas ultrapassem as boas intenções das teorias de redes sociais e adentrem o deserto do real?

A estas tomei a liberdade de incluir mais algumas que irei fazer para as convidadas e o convidado. Antes de tratarmos diretamente destas questões, pediria que vocês fizessem uma autoapresentação, e já a queima roupa falassem sobre essas questões  iniciais que tentaremos no decorrer da mesa desdobrar em outras perguntas e proposições e, se der tempo, abrir para colocações do público que possivelmente também irão se desdobrar  em outras perguntas, algumas muito antigas e sem respostas visíveis no horizonte.

No decorrer do debate, era visível o incômodo de grande parte da plateia, de negros e brancos, tocados pelo movimento de ressaca de mar da negritude como problema de sobrevivência, territorialidade, enraizamento e inclusão em um sistema de poder literário que, como os demais sistemas em operação no Brasil, inclui apenas para excluir melhor depois. No meio do debate, joguei no ar uma pergunta e um enunciado,  e é com o registro desta intervenção que encerro este artigo elíptico e incompleto, como a memória histórica do Brasil.

Achille Mbembe aponta em seus textos para o perigo da disseminação de conceitos criados pelos opressores, conceitos que teriam inclusive um efeito desvitalizante de nossas biopotências enquanto pretos. É como se o  conceito de negro merecesse uma reinvenção que atuasse como um escudo imunizante, coisa que o conceito não pode ser se continuar a ser usado como algo reativo apenas: é um conceito que foi criado pela produção do roubo da energia vital pelos colonizadores. Hoje ele é um conceito movente e abarca corpos e mentes pretas, indígenas, chinesas, faveladas, lgbts, feministas, palestinos etc. Estamos vivendo em um mundo no qual a maioria dos povoamentos está em ou caminha para o estado de negritude. Como nos desvincularmos do poder literário para criarmos outras instâncias? Não vejo como possível a conciliação com os representantes atuais desse poder ou de qualquer outro poder. Teríamos de criar uma espécie de “PCC Cultural” em parte inspirado nos BBP, Black Panther Party, para que respeitem nossa singularidade e subjetividade de diferença?

*Marcelo Ariel é poeta e performer, autor dos livros “TRATADO DOS ANJOS AFOGADOS” (LetraSelvagem, esgotado), “RETORNAREMOS DAS CINZAS PARA SONHAR COM O SILÊNCIO” (Editora Patuá, esgotado) , “JAHA ÑANDE ÑAÑOMBOVY’A” (Editora Penalux) entre outros. Atuou no longa metragem “PÁSSARO TRANSPARENTE” de Dellani Lima e gravou o disco “SCHERZO RAJADA CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO”. Atualmente trabalha em seu primeiro romance “BREU FANTASMA” e coordena cursos de poética e anarcomagia. Lançou neste ano pela Kotter Editorial “OU O SILÊNCIO CONTÍNUO -POESIA REUNIDA -2007/2019” (https://kotter.com.br/loja/ou-o-silencio-continuo-poesia-reunida/ )

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