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por Vinicius Comoti

“A mim assombra que algumas pessoas não queiram correr o risco de pular as ondas no momento em que atravesso a sombra do ódio dos teus chinelos e entro no claro do teu sol travesso, já que é o dia que chega assim em mim. O sol que cega ou é ódio, pai, se esvaindo em mim?”


Ódio ao pai (conto do autor publicado no Nicolau n.22)  


A flana do ouriço trinca a vidraça do desatino. Uma dose na escuridão do dia, escombros pervertidos, jogo na ruína da bica. Palavras de vísceras, bocado de treva, privilégio de uma morte debochada. As feridas, as pernas, os chapéus, o vento, a areia. Vultos que se pestanejam na comunhão da ruga, brigam pelo resto de um remorso oco, fronteiriço, engordurado. O esgarço da garganta no espinho do sereno ou a casa abandonada repleta de cupins. Traças tecem a infância tronchada na dúvida do caminho. Quem a lua trouxe, se despede decidida e a borrasca no deserto se aprimora no desareio da cova. Amargura na saliva de um vulcão coberto por nuvens. Se amansa no tormento, a ressaca lhe engata a grande fúria, no dia seguinte tudo começa outra vez. Cinema de espaço-tempo arraigado ao latido dos cães, a baba escorregadia do avô desfigurado, o menino que se contrai ao horizonte das primeiras ereções. O sol de cócoras na bacia, o passarinho no taxi rumo ao inferno. Espelhos no teto refletem o pinéu perdido no carbono, encalacrado ao esqueleto de veias azuis que chupa a polpa do errante. Açoite de ignorantes na sinuca; a bola branca cai fora da mesa e acerta o copo do rato. Ou da viúva? Se embicam, desferem tapas, cuspes, queimam as tripas com a bituca do cigarro. Dança desengonçada no suor da fossa. O aborto do canhestro, a navalha suja, o céu rosa, os trambiques, a ampulheta rachada, as lambidas, a úlcera, os azulejos do banheiro incrustados. A trégua da rapina, pouso de remelento incomodado, o trabalhador morto pelo rolo compressor no asfalto. Cotidiano perverso no arauto dos baderneiros. Vodka quente, coração estufado, bafio pendurado. O limite turvo desampara as muletas, frieiras coçam até sangrar o disfarce.

No livro Ah, esses homens tão chapéus (1986), as palavras são acompanhadas pelas fotografias de Cesar Brustolin. No livro As mulheres são todas (1987), elas dialogam com os traços de Geraldo Leão. No livro Vente em Mim (2000), os vocábulos são salpicados aos contornos de Guinski. O saber “montado”, ensaios de curtos-circuitos, potência na relação que se metamorfoseia na rasteira, estribeira de manchas mescladas, cacos convencidos, a fissura da linguagem; esta se assume vã, bamba, e se embala na cólera do significado. Se o autor é uma inconstante consigo mesmo, por que não esfrangalhar ao colo de um parceiro? Outros sopros nos acalenta, como Quarenta Clics em Curitiba, de Jack Pires e Paulo Leminski; Bem Feito Prá Você de Ricardo Corona, Flávio Stankoski e Chico Link, e O Mez da Grippe de Valêncio Xavier.

O que esses lírios nos arranham é a transcendência dos loucos, agarrados na balbucia do breu: mulheres e homens no arame farpado. O chapéu disfarça, abriga, embeleza o espectro. A transa se corrói ao movimento de pernas magras, enrustidas na tentação do fetiche. Coito abismado, abstrato ao jorro. O vento incita, amacia, se levanta, refrescando o minúsculo, abdicando o sapato. Se louva garra, encrespa o couro. Uma noite que se decifra no longo silêncio de senhores que observam a história se fenecer, com os paieiros postados na boca explodindo a dobra do luto. Alvorecer na taberna com os rabugentos calados. Presença de uma ausência despudorada. Cabeça baixa na contagem das formigas que zanzam no defunto, a santa desce a escada fria e se ajoelha em sua depressão. Distraídos na correnteza, esbugalham o carma. Cruz metafísica, objeto vendado. A vertigem das estrelas murchas, calos inchados, caranguejeira extorquida na ilusão do falo. Surrealismo de bordas, o repolho inventado podre, a chave jogada ao infinito da enxurrada. Imagens opacas que se conspiram, se entortam, se evocam ao porre do último santo. 

Cesar Bond nos espera no Bond Bar, Bond Ler rindo de nossos humanos.

*Entre a libido das araucárias e a baderna dos fantasmas, Vinicius Comoti se esconde pelo Ahú, abrolho menor de Curitiba. Costuma se debruçar sob o cinema brasileiro, como também vislumbrar em cada folha que despenca no seu caminho, a força de um verso sínico. Publicou os livros Lanzurapa (2016) e Leite com Manga (2018). 

 

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