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por Bruno Nogueira

 

Nossas ferramentas vêm dos bichos. A unha metálica das pás, o osso afiado das facas, a boca monstruosa das escavadeiras, tudo roubado à evolução dos outros. Talvez por isso me incomode tanto ver os monstros de ferro, especialmente a essa hora: o dia não terminou de nascer, e na penumbra as máquinas parecem quimeras metálicas de pesadelo, se alimentando do chão do mundo.

Acordo com o rugido dos motores, mas faz pouca diferença: são quase cinco, tenho que me arrumar. Em cima do colchão fino de solteiro, estico as quatro pontas do lençol úmido de suor, que mais uma vez transformei numa bola de amarrotado durante a noite.

O quarto andar da pensão é o menos movimentado, e consigo ser o primeiro a usar um dos três banheiros comuns: ainda está limpo, cheirando a desinfetante. É prazer cagar num vaso assim fresco, pisar descalço no azulejo claro, frio. Sinto vontade de esticar o banho, aproveitar que acordei mais cedo, mas um dispositivo no chuveiro corta a água quente depois de certo tempo e não quero o susto de sentir esfriando a meio caminho. Visto o uniforme ali mesmo, e quando saio, duas pessoas esperam — daqui a um ou dois minutos a água volta a esquentar. Enquanto subo ao teto do prédio e penduro a toalha no varal comunitário, o azul tímido do céu admite a contragosto que o sol já vem.

A essa hora a pensão fervilha. Noturnos chegam exaustos do trabalho, um ou outro continua enchendo a cara, mas a maioria é feito eu, sai pra empregos mal pagos às 5 da manhã; nos espalhamos pelas mesas da cozinha e tomamos nosso café. Alguns conversam entre si por educação; já não tentam conversar comigo. Antes não gostava de ficar ali, mas aprendi a não ter raiva do desrespeito que é fritarem carne de manhã, passando vontade em quem é de pão seco.

Levo uma sacola de pano com o pão e a garrafinha do café que raciono pelo dia, e saio pra rua em que puta ou outra mais persistente ainda oferece o serviço. Mesmo agora, depois da demolição, evitam ficar em frente ao que foi o prédio. A escavadeira, incansável, ainda me parece monstruosa. Talvez influência do lugar, do que aconteceu, do que falam sobre o prédio desgraçado cujos restos mortais ela finalmente leva embora.

O preparo da demolição levou semanas. Colaram na parede um cartaz enorme com o nome e a foto do engenheiro responsável. Me esqueci: sou ruim com nomes e ele nunca apareceu. Mas acabei trocando palavra ou outra com o encarregado, que antes da implosão me explicou do assunto. Contou que precisavam selecionar os melhores lugares, pra pôr o mínimo de explosivo possível; recolher todo objeto e retirar todo o vidro, pra que não fossem projetados em velocidade pela região; colocar proteções e malhas pra garantir que destroços não atingiriam pedestre desavisado ou prédio vizinho. Me disse que normalmente tiravam a fiação, que fios de cobre valem no mercado, mas esse prédio estava abandonado há tempos, e quando é assim alguém já levou.

Na sexta nos sentamos num bar perto do prédio, depois do trabalho. Depois de algumas cervejas, finalmente, perguntou por que tanta gente evita aquele quarteirão, e eu pude contar sobre o Ronaldo.

Ronaldo morava na pensão. Não conheci bem, e não vou dizer que prestava porque morreu. O contrário: era violento, homem de quem se quer distância. Cheguei a pensar que era de bem: não deixava a barba de qualquer jeito que nem esse povo sujo de hoje, não gostava de bermuda, carregava a arma com orgulho, era daqueles que, você percebe, aprendeu com o pai o certo do errado. Mas na primeira semana na pensão, voltando do trabalho, espancou quase à morte uma traveca que faz ponto na rua, só porque ela ofereceu o serviço. Já vi que era melhor não mexer.

No dia seguinte, no café, a dona da pensão perguntou e ele admitiu. Ainda sentia alguma simpatia pelo menino, falei Pra quê isso, eu também não gosto, mas deixa ela correr atrás do dela, é difícil pra todo mundo e — mas ele me interrompeu, levantou a voz, falou pra eu não me meter. Mandei ele tomar no cu, mas foi em silêncio. A dona da pensão falou que se fizesse de novo, que procurasse outra pensão. Ele tentou responder mas ela falou mais alto, disse que não queria saber, que se achasse ruim era pegar as coisas e ir embora, e ele ficou sentado resmungando. Depois da resposta atravessada que me deu, aquele resmungo impotente me fez sentir quase vingado.

Na mesma noite, o Ronaldo caçou briga num bar perto da pensão. Não foi a única nos próximos dias. Na pensão mesma sempre implicava, intimidava os outros. Ficava perto do quarto das mulheres que interessava — o que é normal, eu mesmo faço, mas ele era agressivo, e quase todo dia a dona da pensão tinha que dar esporro. O problema é que além dela todo mundo tinha medo, e sendo a pensão grande daquele jeito era difícil controlar.

Se parecia que o Ronaldo tinha herdado do pai as opiniões, deve ter aprendido também a beber. Quando sentava num boteco ia embora só expulso ou tonto de cambelar. E numa noite, voltando pra pensão, trocando perna, veio a consequência.

Não sei detalhe. Imagino que tenham atacado pelas costas, aproveitado a tontura, arrastado ele pro prédio. Sei que foi encontrado à beira da morte, estuprado por vários, espancado, cuspido e largado pra morrer. O pessoal do resgate não percebeu na hora, mas acabaram achando a arma: alguém tinha enfiado ela inteira no cu do Ronaldo.

Levou mais de mês pra ele voltar. A dona da pensão guardou o quarto e não cobrou os dias de ausência por pena. Quase reclamei: rabo estragado não faz santo nem paga conta. No dia que voltou, parecia mais quieto, verdade, mas personalidade não muda. Esse tipo de coisa dura pouco.

Não sei se sabia o quanto a história rodou, que foi notícia até no Cidade Alerta. Acho que não. Sei que passou pela cozinha um segundo, cabeça baixa, e quando falei pra ele sentar não percebeu que era piada; só abanou a cabeça que não, levou o jantar pro quarto. Achei estranho, porque o prédio onde ele foi estuprado ocupa a visão toda da janela. Não sei se isso teve influência no que aconteceu depois, mas lembro que ainda estava na frente da porta dele quando começou a gritar.

Não foi um grito normal. Era uma coisa híbrida, misturada, grito, choro, soluço, tudo num único som que enfriava o redor. Corri, ouvi as portas dos outros quartos se abrindo, pessoas saindo pro corredor, mas felizmente ninguém me viu. Só saí do meu quarto meia hora depois, quando ouvi os tiros. Todo mundo saiu. Corremos pra rua, curiosidade maior que o medo, e vimos gente fugindo, desesperadas, do prédio onde o Ronaldo foi estuprado e onde agora atirava em todas as direções. Matou três mendigos, uma traveca, e o cliente que ela tinha levado pra lá. Mas ao menos um pouco lúcido estava: contou o número de balas direitinho, e guardou pra si, exatamente, a última.

Confesso que me incomodou a reação do encarregado. Uma história dessas, e nem sei se ouviu direito. Ficou de testa franzida um tempo, e de repente falou que se você implode um prédio quando tem muita nuvem baixa, a pressão é tanta que o impacto da explosão e o ar, em vez de subir, são jogados pro lado, quebram os vidros, machucam as construções vizinhas.

Preferi nem responder.

 

Nos primeiros dias na pensão eu sempre ouvia as cantadas das putas e das travecas e os moleques oferecendo pedra, mas depois que acostumaram comigo pararam de oferecer. Ecossistema das ruas. Ignoro quando passo, mas gosto de ver pela janela os carros parando, outros dando voltas e voltas sem coragem pra ficar, as travecas de peito gigante à mostra, tanto silicone que a pele quase arrebenta. No desespero, já bati uma ou outra pra elas, da janela, imaginando que era mulher — a vida anda difícil e a pensão cobra taxa pra usar internet.

Depois da morte do Ronaldo, esperei uma semana pra dona da pensão achar locatário. Não achou. A notícia da chacina-suicídio no Cidade Alerta foi má publicidade. Me ofereci pra ir pro quarto em troca de um desconto, e ela aceitou. Ali não dava pra bater punheta olhando pela janela: a visão da rua era boa, mas era desagradável desviar o olhar pro prédio e acabar lembrando, na hora errada, da arma enfiada no cu do Ronaldo — até que, finalmente, a demolição aconteceu. Acordei com o estrondo e vi no lugar do prédio a nuvem de poeira que se aproximava, e invadiu o quarto antes que eu conseguisse fechar as janelas que ainda chacoalhavam no batente. Através da tosse ouvi as putas gritando e xingando, tentando fugir da tempestade de areia, mas eu sabia que tanto pra mim quanto pra elas era alívio. Desde o surto do Ronaldo, poucas tinham coragem de ficar por ali. Os corpos foram tirados rápido, mas ninguém deu ao trabalho de limpar o sangue; parte evaporou e parte ficou, espalhada em manchas no interior do prédio, e o povo começou a contar história. As putas diziam que dava pra sentir cheiro metálico de sangue ou cheiro podre de carne, falavam que dava arrepio chegar perto, e até uma ou outra história de fantasma apareceu. Quando mudei pro quarto do Ronaldo, tentaram me assustar com essas histórias, dizer que dava pra ver o espírito olhando pro prédio daquela janela, ou que a janela abria e fechava sem ninguém ali. Tudo bobagem, claro, mas até a dona da pensão resolveu brincar comigo, e bateu na minha porta no meio da noite, falando que tinha ouvido um barulho medonho, de grito misturado com choro e soluço, mas eu tava dormindo feito anjo. Fiquei pensando se ela sabia do jornal que enfiei sob a porta do Ronaldo, no dia do surto. Acho que não. Soubesse, tinha me expulsado.

Nem todo mundo acreditava, claro. Alguns mendigos estavam morando no prédio abandonado há tempos, e os mais bêbados voltaram pra lá assim que a polícia saiu, seu próprio cheiro mais forte que o do sangue. Aos poucos voltaram os outros, e alguns novos vieram, talvez sem saber da história — e se soubessem, melhor ali que morrer no frio ou na chuva, especialmente agora que o clima fechava e tinham pro inverno não mais que pano ou outro, ou cuba qualquer em que acender fogo. Alguns viciados também entravam no prédio, não conseguiam demorar a usar a pedra que compravam dos moleques na esquina. Muitos acabavam passando a noite. Era tanta vida rasteira que a aura de assombrado diminuía.

Mesmo durante o preparo pra demolição, ficaram morando, tolerados por serem inofensivos. Não atrapalhavam. Não sei pra onde foram.

Quando acordei, a escavadeira ainda estava lá. Moderna e pré-histórica e concreta e sonhada, monstro glorioso e mágico e real, movimentos empresariais e dentes de metal. Levei as mãos à boca quando, passando em frente ao prédio, me lembrei do sonho: estava sentado, comendo de uma mesa em frente à janela. Tinha peças do metal preto das escavadeiras no lugar dos dentes e comia pedaços de carne gigantes de um bicho que não sei qual é, triturando os ossos enormes e engolindo com ajuda do sangue. Acho que teria esquecido o pesadelo; não lembrava quando acordei. Mas quando passei em frente ao terreno e olhei pra escavadeira, percebi umidade nos dentes dela, e vi quando uma única gota se desprendeu, e explodiu num minúsculo ponto vermelho-escuro contra o branco sujo da calçada.

 

Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba. Bruno lançou com a Kotter o seu primeiro livro de contos, A Síndrome do Impostor (2018).

Foto: Peter H

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