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por Sergio Confort

Éramos todos meninos. Meninos que, vivendo o final dos anos 60, naturalmente amávamos os Beatles e os Rolling Stones. Porém, de família ligada visceralmente à música, também éramos abençoados pelas velhas serenatas tradicionais dos encontros familiares. Então, os poucos, fomos afiando nossos ouvidos com essa mistura boa, que achava um jeito de unir os estribilhos dos “desviados” ingleses com os cantores donos da chamada “voz com dó de peito”, como diziam dos nossos cantores da era de ouro do rádio. Eram tempos de Silvio Caldas, Nelson Gonçalves, Dalva de Oliveira, Vicente Celestino e, claro, John, Paul, George, Ringo, Jagger, Richards, Watts e Wood.

Ali, no interior do Estado do Rio, numa cidadezinha com menos de 20.000 habitantes, ainda não conhecíamos o que se passou a chamar de MPB, e seus ícones, como Chico Buarque, Caetano Velloso ou Edu Lobo. O mais próximo que chegávamos de uma música brasileira mais moderna, digamos assim, foi por meio da concessão que os mais velhos abriam para os sambas-canção de Tom e Dolores Duran, o charme de Lúcio Alves, Dick Farney, Johnny Alf ou mesmo para os sempre atuais – até hoje – Noel e Lupicínio Rodrigues.

Mas como amávamos aqueles encontros musicais na casa da nossa avó Maria… E, mesmo que estivéssemos contagiados pelas guitarras do tal do iê-iê-iê, e pela energia da jovem guarda, sabíamos que estávamos ligados visceralmente àquelas canções, àquelas histórias, àquelas vozes.

Tínhamos, portanto, a música como base da nossa formação. Sempre fomos assim. Eu, particularmente, acho que não passo mais do que 10 minutos sem me lembrar, cantarolar, ou mesmo relacionar algum fato a uma canção. Tudo para mim gira em torno da música: do amor à dor, da fé à descrença, da alegria à tristeza, da utopia ao desencanto. Tudo, absolutamente tudo, tem uma trilha sonora em minha cabeça. E sei que todos esses meninos comigo crescidos naquele ambiente – assim como muitos outros que aqui me leem – também são assim.

Isso me lembrou uma história. Ela foi narrada por Sérgio Cabral (o pai, pelo amor de Deus!) num dia especial em minha vida, quando participei do lançamento do delicioso “O Pipoqueiro da Esquina”, livro publicado a quatro mãos por Drummond e Ziraldo.

Numa roda da qual eu participava mais como ouvinte – tinha 19 anos – Cabral, entre um cálice de vinho e outro, nos contava que certa vez, durante a ditadura, estava jantando, acho que no velho Plataforma, junto com Ziraldo, Jaguar, Plínio Marcos e mais alguns amigos. Na mesa ao lado, um general com sua família. Com o avançar das horas – e das garrafas – criou-se aquela intimidade etílica que costuma unir até árabes e judeus no Rio de Janeiro, e o general, a certa altura, se revelou um admirador da obra da turma da mesa ao lado e da nossa MPB, chegando mesmo a “puxar” algumas canções. Ao ouvirem tal revelação, sacanas como eram, começaram a caçoar do general: era o militar abrir a boca e proferir uma palavra, alguém já emendava uma canção que se encaixava perfeitamente. Mais ou menos assim: o general começava: “você…”, um mandava: “ manhã de todo meu…” e os outros continuavam, às gargalhadas; daí a pouco, lá vinha o general: “sabe…”, um outro, em cima do laço: “… você o que é o amor? Não sabe… eu sei…”, para delírio da galera. E assim foi até que o general – que podia estar bêbado, mas não era burro – se tocou e gritou: “Me respeitem! Eu sou um general do Exército Brasileiro!” E todos, de uma só vez, como se tivessem ensaiado: “Chegou general da banda, eh, eh…”. Não deu outra: o homem deu voz de prisão para todos. Inesquecível. Se foi verdade ou não, não posso afirmar. Mas me identifiquei na hora.

Sempre me lembro disso porque sou assim. Tenho que me policiar, pois, às vezes, a coisa sai tão naturalmente que cria situações inusitadas, e, não raramente, desnecessárias e até mesmo desconfortáveis. Digo isso para mostrar o quanto a música está em minhas veias. Não sou músico, mas amo a música. E em minha família eles existem aos montes. E todos maravilhosos.

Pois bem, naquele final dos anos 60, início dos anos 70, com toda aquela base musical fomos, naturalmente, mordidos pela tal MPB. E Chico, Caetano, Tom, Vinícius, Edu Lobo e Milton Nascimento, entre outros, entraram em nossas vidas para jamais saírem. Naqueles tempos, uma coisa sempre me chamava a atenção: quanto mais me aprofundava e acompanhava a obra desses caras, descobria que todos, em uníssono, sempre falavam com adoração sobre um sujeito, um tal de João Gilberto, e sua importância no estilo e na construção de suas próprias obras. E o mais interessante, assim como acontece com os grandes fenômenos, todos se lembravam exatamente do dia e o que estavam fazendo quando ouviram o baiano pela primeira vez. Aquilo era mesmo curioso. Precisava conhecer esse cara.
E a coisa se deu, como por encanto, da mesma forma que com todos eles, e eu também me lembro a primeira vez que eu ouvi João Gilberto: tinha 14 pra 15 anos e adorava ouvir uma estação de rádio chamada Ipanema, do Rio, que tocava apenas MPB. Foi então que, numa sequência com Chico, Bethânia e outros, entrou um cara cantando de leve, baixinho, com uma voz fraquinha (não tinha nada de “dó de peito”), mas muito gostosa e afinada demais. Adivinhei na hora: esse era o “tal” do João Gilberto. O que foi confirmado logo em seguida, pelo locutor: “João Gilberto, de Tom e Vinícius, Chega de Saudade”. Então essa era a tal gravação que tanto encantara aquela gente! Pronto, eu acabava de entender os caras que o adoravam, pois comecei também a admirá-lo e a acompanhar sua obra.

Ouvir João é sempre um deleite. Às vezes, ao ouvir uma nova gravação, ele parecia chato, repetitivo. Ao ouvir a segunda vez, algo sobressaia. Numa terceira vez, me deliciava com a identidade inconfundível. Nas seguintes, a mágica se fazia, e tudo era puro encantamento.

Genial e, dizem, genioso, ficaram famosas, por conta da sua incrível capacidade musical e perfeccionismo, suas brigas nas gravações e até mesmo em concertos que fez espalhados pelo mundo. Uma dessas clássicas situações, contada de forma deliciosa por Tom Jobim, se deu nos bastidores da gravação do fundamental “Getz/Gilberto”, que lhe rendeu o Grammy de melhor álbum em 1965. Vale a pena uma conferida no Google.

Hoje, ao comentar com um primo músico – bem mais jovem, e mais ligado ao rock – ele se referiu a João Gilberto de forma definitiva, explicando, sem saber, e de uma vez por todas, a paixão da nossa geração, que conseguia, ao mesmo tempo, amar os Beatles os Rolling Stones, Sílvio Caldas e Lupicínio, Chico, Milton e João Gilberto. Disse meu querido primo: “João era puro rock´n roll!”. É isso.

João faz parte de uma constelação de gênios nacionais que colocaram o Brasil num patamar de destaque na cultura mundial, como Machado de Assis e Villa Lobos; e de uma geração que surgiu num Brasil que parecia imbatível, que encantava o mundo em todas as frentes, no cinema, nos esportes, na arquitetura, na música e no teatro. João e a Bossa Nova surpreendiam ao mesmo tempo que Tom, Vinícius, Niemeyer, Anselmo Duarte, Maria Ester Bueno, Pelé, Garrincha e Eder Jofre.

Era o Brasil respeitado e respeitoso. Um País que se impunha pela arte, pela cultura e pela tradição da sua respeitada diplomacia. Perfil que não chegamos a perder nem mesmo durante os anos da escuridão de uma ditadura tão dolorosa e que tanto nos levou.

Pois é. João morreu hoje, deixando uma belíssima história e um imenso legado de um Brasil que parece não mais existir.

João se vai num momento de muita dor, quando vivemos tempos confusos e distópicos, onde a cultura, a arte e o conhecimento são vilipendiados diariamente numa política de governo totalmente descomprometida com a história tão linda que ele e toda essa gente ajudou a escrever.

E como dói constatar que quando escrevo, enquanto publicações de todo o mundo choram sua morte, o governo federal sequer emitiu uma nota sobre seu falecimento. Nenhuma nota de pesar ou de luto oficial. Nada. Mas nada mais nos surpreende num governo que, há cerca de 5 dias, homenageou um oficial nazista condecorado por Hitler.

Os tempos são outros, João.
Vai em paz. 
A gente vai ficando por aqui, num país cada vez mais desafinado.

 

*Sergio Confort (Mendes-RJ-1960) é designer e publicitário. Cursou Belas Artes (UFRJ) teatro (Martins Penna-Rio)É casado com Angélica, pai de Maria e mora em São Paulo. Crítico, manteve seus poemas guardados “a sete chaves” e, apenas recentemente, decidiu participar de concursosCom a recepção positiva ao seu trabalho em algumas coletâneas, finalmente “ousa” publicar. O resultado é este passeio por décadas de escritos, haicais e pequenas histórias em forma de poemasua centopeia. 

 

 

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