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por Bruno Nogueira

 Três e meia, Damiano estaciona à porta do Alberto. Distingue a seu redor o pagode que vem de lá e se mistura no ar com o funk que estoura em outra casa no quarteirão, em meio a conversas e vozes e gritos. Traz as seis cervejas que sobravam na geladeira do velho, aliás, na Sua geladeira, e o dinheiro. Parte vai pra diarista: aproveitar que as madames deixaram todas à míngua e deve estar barato arrumar alguém que dê um tapa na casa. O resto, pra comemorar: o que morrer em cerveja e carne hoje, maravilha. Grita o Alberto, que abre o portão eletrônico, a barriga preta explodindo fora da bermuda, o cordão grosso de ouro no peito e uma cerveja na mão. Recebe Damiano num abraço apertado que Damiano retribui.

            Entra aí, meu velho!

            Damiano entra. Da sala já ouve a conversa alta do Cássio, mas só chega até ele depois de passar pela cozinha e cumprimentar a Rute, que arruma alguma coisa no fogão. Lá fora o cenário típico dos churrascos no Alberto: o sol bate forte na piscina, que não é pequena mas ele ainda não se animou a pagar quem enterre e se avoluma metro e meio acima do chão de concreto, onde Clarinha e Paulinha estenderam toalhas e tomam sol. O Cássio toma uma, e ao lado dele o Alberto, que agora já voltou com o Damiano, mexe numas carnes na churrasqueira. Paulinha é a única de máscara, deitada com o biquini solto nas costas e uma caneca de metal do lado. Clarinha, ao lado dela, tem uma cerveja em lata num isopor, e de biquini também solto conversa com Paulinha, gesticulando de um jeito que quase mostra tudo, prelúdio típico dos ataques de ciúmes do Cássio, que agora cumprimenta Damiano com a voz gigantesca, que soa com destaque acima do pagode explodindo a caixa de som.

            Damiano, meu velho, bom demais?

Damiano responde com a voz baixa demais; Cássio não ouve, mas não pergunta. Dá uma golada na cerveja. O sol, refletido no crucifixo prateado em seu peito sem camisa, incomoda os olhos de Damiano.

            Damiano, vem cá.

            Você sabe que eu adoro o Alberto. Amigão mesmo, do coração. Mas o Alberto, ele é ingênuo, Damiano. Ele acredita em rede globo.

Ele eu sei que não adianta conversar, mas você, você tem que largar de ser bobo, Damiano, ficar preocupando com gripezinha. Não tem nada de hospital UTI cheio por conta disso não, seu pai, velho sem saúde daquele jeito, não aguenta mesmo não, por isso que velho toma vacina pra gripe, qualquer coisinha ó…

Porque demorou desse jeito, mestre?

            Então Alberto… passei o dia no hospital, acredita?

            Meu velho morreu.

            Caralho Damiano… meus pêsames cara.

            Brigado.

            Te deixou alguma coisa?

            Uai Cássio… ele não fez testamento né, então tudo. Não conseguiu conter um sorrisinho.

            Porra, tu ficou com a casa então?

            Fiquei.

            Mas que maravilha Damiano! Tem que comemorar isso aí!

            Tô aqui é pra isso! E só aí, um pouco, pela alegria, ele levanta a voz em comemoração.

            Bom demais, meu amigo, bom demais! Rute! Rute! Pega um whisky pra nós que hoje é dia de comemorar!

            E de repente o grito do Cássio.

            Porra Clarinha, de novo?, fica esperta!

            Damiano olha. A Clarinha se sentou completamente, completamente à mostra os peitos que o Cássio cobre puxando ele mesmo o biquini e falando alguma coisa que Damiano não ouve, mas ouve a resposta:

            Ai, Cássio, foda-se, e daí?

            E ri. Damiano também ri: danada. O Alberto, que de regra não tem discrição nenhuma, encara, pra incômodo de Rute, de Cássio, do próprio Damiano. No dia em que o Cássio exigiu que a Clarinha vestisse uma blusa e ela tirou ali mesmo o biquini e vestiu a blusinha branca por cima e ficou ali com os peitos soltos delineados pelo contorno do tecido, não tirava os olhos. Essa menina odeia o Cássio, juro por Deus. Você acha que uma coisinha dessa ia me dar moral? Eu vejo no jeito dela de chegar, de pedir pra bater, como se descontasse alguma raiva naquilo, como se cada tapa nela fosse um tapa no Cássio, sei lá. Não sei por que não larga dele. Não tem lógica. Se bem que a gente é assim né? Medo de perder até o que não gosta.

            A Rute chega com uma garrafa de whisky 18 anos e dá no Damiano um abraço.

            Que bom, meu filho!, que bom! Você merece, viu?

            E ele retribui, mas se sente meio mal. Sem graça. Ela se senta com eles, se serve também de uma dose. Damiano não gosta muito de whisky, ainda mais sem gelo que é como o Cássio insiste que bebam, mas vira uma dose pela comemoração.

Damiano vai pra cozinha buscar cerveja. Outra vez, geladeira aberta, para. Fica pensando por momentos.

            Quê isso Damiano, teve um derrame?

            Cássio gritando da porta da cozinha. Damiano faz sinal pra que chegue mais perto. Confidencia a ele a suspeita que tem enquanto pega da geladeira uma lata e enche o copo.

            Cada insulina é um frasco desse tamãezinho, mas dura dias, aplicação mais outra. Sobrou um na geladeira com tão pouquinho no fundo… achei esquisito, fiquei pensando se aquilo dava mesmo pra uma dose…

Se não era economia.

            O olhar de Cássio é desconfiado, altivo, um olhar que ele não raro veste quando vai falar, uma soberba que o ouvinte às vezes confunde com reflexão.

            Tem o frasco aí?

A enfermeira levou.

            Cássio, feito quem elabora, franze por um segundo os olhos. Sorri.

            Ah, Damiano, isso aí, meu amigo, é uma máfia. Certeza que vende isso por fora. Aposto que dava meia dose por dia pra ficar com metade e vender depois. O Cássio é um desgraçado. Só não falo que é o pior possível porque nunca levantou a mão pra mim, mas a gente não sabe o dia de amanhã, né?, e ameaçar ele ameaça. Desde que eu comecei no mercado ele ficava olhando, rondando, aparecendo pra comprar bobagem e me passar cantada idiota de pedreiro que depois eu contava pras meninas e a gente passava a tarde rindo das idiotices dele. De vez em quando me dava uns presentes e eu aceitava, mas não queria nada, mas ele continuava insistindo, e umas meninas do trabalho, e até a Luíza minha irmã começaram a pesar, com um papo de vai lá, e tal, dá uma cordinha, uma saidinha, deixa o cara te mimar, e eu acabei resolvendo deixar. Rapidinho eu peguei a dele. O cara quer status, imagem, quer minha trofeuzinho, e acha que sou eu. Falo porque uma coisa ele tá de parabéns: nunca deixei me comer e nunca forçou — e eu acho que isso é o mínimo, sabe?, mas ainda é raro o suficiente pra surpreender, ainda mais num cara desses — e é por aí que para a santidade — porque ele adora pagar de machão, de dono da porra toda, e de dar ordem e tal, e enquanto eu não contar pra ninguém que a gente não transa e que ele não manda é porra nenhuma ele tá feliz de chegar nos lugares e saber que tem gente me olhando — o meu biquini mesmo, o pequeno, que ele xinga na hora da piscina, foi ele quem deu, acho até que se eu contasse que dou pro melhor amigo dele ia era bater palminha e pedira pra assistir — e se matasse a gente depois era só pra não pegar mal.

            Pensei que insulina o governo dava.

            Quem te falou isso? Ela?

            Damiano fez que sim.

            Duvido. Deve dar não. Isso é papo dessa enfermeira pra te enganar e levar o remédio. O SUS custa atender quem tá morrendo, imagina dar medicação.

            E Damiano, que há três anos recebe do governo medicamento pro intestino, não fala nada. Não gosta de discussão. Imóvel, olha adiante, como quem pensa profundo no que ouviu.

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