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Um colombiano esguio como uma escultura de Giacometti abordou-me num domingo à noite. Escurecido pela pátina que a cidade lhe deposita todos os dias, pediu-me alguns trocados. Éramos ele e eu na rua vazia. Manteve-se à distância, à espera da minha devolutiva, com os olhos fixos numa roleta imaginária onde giravam as palavras sim e não.

Para responder, precisei acionar as serotoninas que resistem nos meus cérebro e intestino quase sexagenários. Acabara de participar de um encontro em que elas tinham sido liberadas para dançar, portanto estavam bem ativas. Mas não contavam com uma missão tão prosaica: “teria dinheiro na carteira?” Como você, tenho tocado cada vez menos no vil metal. O dinheiro digital é soberano, habita espremido aquela plaqueta de plástico, da qual teletransporta-se pra conta alheia, sem estabelecer qualquer vínculo afetivo conosco. Esconde-se também nos celulares, encurralado pelo irrequieto Pix, que vende facilidades e entrega desfalques.

Analógico, o colombiano me aguardava de olho na roleta imaginária. Mesmo de má vontade, as serotoninas mandavam ver nas sinapses e faziam um rebu no córtex temporal, sem concluírem, porém, se havia ou não havia papel-moeda no porta-notas. Olhei pro meu irmão latino e balbuciei algo como – “Vou dar uma espiada aqui”. Como um cipó agarrado a uma árvore centenária, o conterrâneo de Garcia Márquez permanecia imóvel. As sinapses levavam-me pra florestas colombianas, pra guerrilhas no meio da mata amazônica, pro espanto de Aureliano Buendia diante do bloco de gelo, pra chuva contínua de Macondo, e até para as pinturas de Botero, o que considerei um escárnio diante do shape do meu amigo colombiano. A indignação ajudou-me a frear o baile psicodélico que rolava solto no meu cérebro, auxiliando-me na busca coercitiva da minha carteira.

O colombiano dichavou algumas palavras, imaginando-me apavorado por encontrá-lo ali, ermo, numa rua ao pé de um viaduto no Jardim Botânico, abandonada pelo amor de Deus. Por causa da ginástica neuronal recém-praticada, não sentia medo. Estava à espera de um Uber. Só mais tarde me dei conta que os humildes minutos iniciais prometidos pelo aplicativo já haviam se espichado em dezenas deles. Dois motoristas tinham desistido de me encontrar, cientes talvez de que primeiro era preciso certificar-se se eu possuía alguma cédula do dinheiro nacional para transferir, sem custos, ao meu paciente vizinho latino. A essa altura, o domingo já dera lugar à segunda-feira, que chegava debaixo de uma garoa fria.

Finalmente abri a carteira e dei com um par de cédulas de dois reais. Fiquei entre aliviado e envergonhado, pois me afeiçoara pelo pedinte colombino e achava que dar quatro paus para ele, sujeito finíssimo nos dois sentidos da palavra, era um acinte. Entreguei-lhe as notas. O colombiano me agradeceu e finalmente moveu-se. Três ou quatro passos adiante, virou-se e me perguntou: “— ¿Crees en Dios?” Apanhado de surpresa, respondi com um sí meio murcho, mas ainda assim um sí.

A caminho do Pilarzinho, com as serotoninas navegando na imagem do peregrino da madrugada, fui retomando meu ateísmo.

 

Crédito da imagem: Imagem é uma reprodução de uma obra da série “Valor de uso” do artista colombiano David Guarnizo, disponível em: http://www.davidguarnizo.com/Valor-de-uso, acesso em 29 nov. 2021.

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