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por Bruno Nogueira

Todos os dias Lira seguia pro hospital, um poema na boca e a cabeça preparada como possível pra abrir a porta do quarto e encontrar Daniel imóvel sobre a maca.

A sensação às vezes era tão sem ar que se estava sozinha ela corria e deitava a cabeça no peito dele, pra sentir o calor e ouvir os batimentos — mesmo que aquele som pudesse ser do próprio sangue, bombeado forte demais pelas veias auriculares. Gostava de imaginar que toda a atividade fisiológica que restava era o corpo dele tentando se revoltar contra a imobilidade externa.

Na maioria dos casos, Esteves, pai de Daniel, acompanhava até o quarto. Sorriam socialmente e a conversa que conseguiam não chegava à metade do caminho pelos corredores. Depois de alguns segundos ele a deixava sozinha e ia resolver alguma coisa no hospital, que administrava.

Lira entrava no quarto com solenidade. Cada vez mais associava o antisséptico à falta de vida.  A janela aberta mostrava o flanco do prédio vizinho, parede gelo a poucos metros, as paredes do quarto e o chão cinza levemente azulados na lâmpada fosforescente. Era proibido ligar a televisão, presa à parede por um suporte.

Lira se sentava ao lado de Daniel. Pegava sua mão.

Depois de dar algum tempo pra que Esteves se afastasse, porta fechada, ela começava:

“Puseram-me uma tampa — Todo o céu. Puseram-me uma tampa

Que grandes aspirações! Que magnas plenitudes!

E algumas verdadeiras…

Mas sobre todas elas

Puseram-me…”

Como sempre, não conseguia continuar por alguns segundos. Desde os primeiros versos, uma leve diferença no lcd que marcava os batimentos. Sentia que os dedos de Daniel se moviam suavemente, fechavam ao redor de sua mão, e então, ele se sentava. Mantinha os olhos fechados, mas se sentava. Parecia respirar mais fundo e limpo, e inclinava a cabeça quase imperceptivelmente rumo à origem do som. Se sentava.

Lira terminava a leitura e deixava que ele se deitasse novamente. Não queria ser expulsa dali, mas acreditava que aquilo podia levar a uma melhora no estado de Daniel. O próprio Esteves tinha acreditado no início, mas agora se deixava tomar pelo medo. A leve diferença na expressão facial de Daniel, pra ela, era indicação suficiente. Mas como não podia se arriscar mais se acostumou a memorizar um poema curto, e depois conversar com Daniel como se ele pudesse ouvir, contando as novidades da uf, lembrando.

Sempre mencionava que voltando de São Paulo numa madrugada de domingo acordou num solavanco do ônibus e viu um sonho: no outro lado do corredor, um homem lia um livro que iluminava seu rosto. Procurou uma fonte de luz superior, mas não existia: a luz saía do livro nas mãos dele. Quando o ônibus parou num posto de beira estrada, ela acordou com as luzes reais do lugar — mas a impressão de sonho continuava. Ainda tinha um cara ali, lendo, lendo alguma coisa que iluminava os olhos. Não aguentou.

No fim era só um e-reader com iluminação embutida, numa capa que fingia ser livro — mas ele estava lendo Faulkner. Conversaram pelas seis horas de viagem restantes. Daniel falou de Faulkner e ouviu sobre Dickinson Cortázar e Plath. Comentou Lolita e ouviu sobre Stigger Hilda Hilst e Trevisan.

Trocaram whats e se encontraram 36 horas depois. Beberam café, caminharam pela cidade, beberam mais café, comeram, encontraram amigos dela, andaram pela noite, pelos bares, beberam cerveja, beberam rum, beberam catuaba, se agarraram no banco traseiro de um uber, transaram várias vezes no apartamento dela e Daniel acordou no dia seguinte às três da tarde.

Telefonou pro pai, que a essa altura já tinha posto cada policial da cidade atrás do filho. Ela observava sorrindo e deitada de lado, os seios pequenos soltos e a ponta dos dedos acariciando a pele de Daniel. Ele se levantou ainda sem roupa ou saber onde tinha deixado, magro, parecendo ainda mais negro contra os lençóis brancos que tinham se enrolado em suas pernas. Precisava ir embora imediatamente e minimizar a fúria paterna — mas ela tirou a calcinha. Chegou em casa com a mochila e uma sacola cheia dos livros que ela emprestou quase três horas depois. Como sempre, contou com honestidade o que aconteceu pro pai, que era quem era e recebeu as novidades com um certo orgulho, o que aplacou um pouco do nervosismo. Só exigiu, sob penas, que Daniel não deixasse de telefonar em outra ocasião dessas.

E ocasiões não faltaram. Esteves não exatamente mas meio que intimidava Lira, a formalidade exagerada e toda uma atitude de Vamos Nos Conhecer Melhor Já Que Você Vai Ser A Namorada Do Meu Filho que acabava soando hostil, e por isso Daniel passava quase todo fds na casa dela — fora que Lira gostava de gemer livremente, e na aura da casa de Esteves até espirrar era constrangedor. Ele, ainda que se sentisse um tanto preterido, aceitava. Era natural, saudável mesmo, que aquela menina fugisse um pouco do que esperava de Daniel.

Ele ainda era novo.

*Coma integra o livro em pré-lançamento A Síndrome do Impostor, que será lançado no próximo dia 19/02.

*imagem no site www.unsplah.com

*Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba, onde busca concluir um mestrado em literatura.

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