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Novembro. Calor insuportável. Ruas cheias, um número de máscaras menor que o ideal, mas maior do que esperava. O suor se acumula e umedece a máscara. Almoço num restaurante.

Não sei em que ponto perdi as esperanças. Cuidados parecem fúteis quando ninguém a seu redor toma. Nem meus familiares nem os poucos amigos que me permito encontrar se protegem. Os amigos se sentam em bares sem preocupação. Meu sogro-avô foi levado pelo vírus, e ainda assim a família não usa máscara perto de minha avó e de meu tio que tem problemas respiratórios (único caso em que ainda tomo todos os cuidados possíveis, mesmo que eles mesmos não tomem e o clima de tranquilidade quase me faça esquecer). Minha cidade é uma daquelas em que o vírus mais se propaga, mas a porcentagem de mortes caiu um pouco, já que agora os profissionais de saúde aprenderam mais sobre a doença. Isso parece suficiente para que não importe mais. Almoço num restaurante.

Não é self-service (também não é assim), é um lugar razoavelmente organizado, prato feito saboroso e grandinho (se meio caro), álcool de arder os olhos espirrado na mesa por funcionários sempre de máscara, etc., mas as mesas na mesma distância de sempre, o lugar um tanto cheio. Encontro a mais distante da muvuca e me sento. Engasgo com alguma coisa, tenho crise de tosse, olho ao redor pensando que suspeitarão, mas as conversas continuam, nenhum olho se volta. Todos comem tranquilamente. Eu também.

Não sei vocês, mas tenho a impressão de que já tratamos a máscara feito peça qualquer de vestuário. Estabelecimentos exigem porque a prefeitura exige, pessoas usam porque as lojas exigem, e algumas, que conseguem não se incomodar, mantêm as suas no rosto a todo momento, por preguiça ou falta de onde guardar. Eu transpiro horrores, e usar máscara no calor de Uberaba é uma tortura. A barba curta aumenta o calor no rosto, mas prefiro não escanhoar. Ela impede que o suor escorra livremente ou impregne demais a máscara. Carrego um pequeno pote de álcool comigo, que uso com alguma frequência, mas nunca vi outra pessoa que usasse um desses, e me sinto um pouco estranho ao usá-lo. A indiferença dos outros se transformou num diabo no meu ombro.

Como todos os diabos, esse tem seu contraponto: o anjo no ombro esquerdo. O problema é que o anjo meio que desistiu. Antes ele acreditava que pessoas que transmitissem o vírus a seus familiares e os vissem morrer sentiriam alguma culpa. Que veriam a morte de outros, causada pela própria indiferença, a morte de seus pais e mães e avós e filhos, e se sentiriam mal com isso, mudariam de alguma forma. Hoje já não é tão ingênuo. Assumiu uma atitude quase adolescente de “foda-se”. Vocês que se danem. E no espaço que deixou vazio, o diabo do outro ombro medra.

E eu deixo.

Às vezes é difícil não concordar com a descrição que Sartre fez do inferno.

 

Bruno Nogueira é um escritor e tradutor mineiro, nascido em Lagoa da Prata e radicado em Curitiba. Bruno lançou com a Kotter o seu primeiro livro de contos, A Síndrome do Impostor (2018).

Foto: Edward Hopper – Office in a Small City – The Metropolitan Museum of Art

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